A autorização para a Receita Federal encaminhar ao Ministério Público Federal provas que confirmem suspeitas de lavagem de dinheiro dividiu as opiniões dos especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Há quem entenda que a norma distorce o sistema acusatório e aumenta a probabilidade de erros judiciários. Outros, contudo, avaliam que a medida reflete um entendimento do Supremo Tribunal Federal e vai melhorar as investigações.

25 de janeiro de 2024

Com nova portaria, Receita Federal busca intensificar combate à lavagem de dinheiro (Raphael Ribeiro/BCB)

Publicada no Diário Oficial na semana passada, a Portaria 393/2024 altera os procedimentos para autorizar os auditores a fazer representação para fins penais dos crimes de falsidade de títulos, lavagem ou ocultação de bens e aqueles contra a administração federal.

Segundo o próprio MPF, as mudanças foram sugeridas para a Receita em 2022, com o objetivo de “ampliar e facilitar o trabalho dos dois órgãos no enfrentamento a ilícitos penais fiscais”. A aproximação entre os órgãos foi iniciada em 2020, com a assinatura de um acordo de cooperação interinstitucional. Em junho de 2022, a Câmara Criminal do MPF e a Receita se reuniram para estabelecer ações concretas para o trabalho conjunto dos dois órgãos.

As regras sobre a representação fiscal para fins penais (artigo 83 da Lei 9.430/1996; artigo 48 do Decreto 7.574/2011; e as sucessivas portarias da Receita, como 2.752/2001, 1.279/2002 e 326/2005) estabelecem que a medida seja formalizada e mantida na unidade responsável pelo controle do procedimento até a decisão administrativa final sobre a exigência do crédito tributário correspondente, conforme explica o advogado Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Somente haverá envio da representação ao Ministério Público se houver constituição definitiva do crédito.

Essas normas são alinhadas a uma súmula vinculante do STF que tem a seguinte redação: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.

A Portaria 393/24 impõe o envio da representação ao MPF, no prazo de dez dias, em casos de crimes de falsidade de títulos, lavagem ou ocultação de bens e aqueles contra a administração federal. Para serem detectados por servidores da Receita Federal, esses delitos tendem a estar vinculados a crimes tributários, ressalta Malan. E o Código de Processo Penal, aponta ele, determina que todas essas infrações penais (tributárias e não tributárias) sejam submetidas a julgamento unificado, em razão da conexão probatória (artigo 76, III).

“Assim, há risco de haver disfunção na persecução penal: crime conexo não tributário será submetido à persecução penal de imediato, enquanto isso não poderá ocorrer com o crime conexo tributário. Consequentemente, o Poder Judiciário terá acesso a quadro fático-probatório mais fragmentado e incompleto, com possível incremento do risco de erros judiciários”, opina o advogado.

A nova portaria da Receita Federal foge do escopo do sistema acusatório, no qual a investigação deve ser feita pelos órgãos de persecução penal, que têm a atribuição legal e constitucional para tanto, segundo a avaliação do criminalista André Callegari, professor de Direito Penal do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.

De acordo com ele, atribuir a auditores a possibilidade de fazer representação para fins penais é um “empréstimo ilegal das competências persecutórias”, feito “em nome de um controle abusivo de eventuais condutas do delito de lavagem, o que já foi rechaçado pela jurisprudência brasileira”.

“É uma nova tentativa da Receita Federal de subverter o seu plexo de atribuições, determinado legalmente e sem espaço para acréscimos em razão do princípio da legalidade. Não se pode esquecer que a atuação dessa agência governamental para a prevenção e repressão da lavagem de capitais não é uma carta em branco”, destaca Callegari.

Autorização judicial
Na visão do advogado Alberto Zacharias Toron, professor de Direito Processual Penal da Fundação Armando Alvares Penteado, a portaria da Receita Federal apenas normatiza o entendimento consolidado pelo Supremo no Tema 990 de repercussão geral. No caso, a corte fixou a seguinte tese:

“1) É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.
2) O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios”.

Porém, o contrário se submete à reserva de jurisdição, ressalta Toron. Ou seja, o MPF não pode pedir provas de crimes à Receita sem autorização judicial.

Por outro lado, o procurador da República Vladimir Aras, professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal da Bahia, elogia a portaria. “Era um antigo pleito do MPF, que agora a Receita Federal acolheu. Alguns ilícitos tributários e aduaneiros podem estar vinculados a condutas de lavagem de dinheiro.”

“A possibilidade de comunicação pela Receita ao MPF abre caminho para investigações que podem elucidar importantes esquemas criminosos. A medida está em consonância com a legislação brasileira e os compromissos internacionais do país perante o Grupo de Trabalho Antissuborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (conhecido pela sigla em inglês WGB, de Working Group on Bribery) e o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi)”, afirma Aras.