Para implementar o filtro da relevância no julgamento de recursos especiais, o Superior Tribunal de Justiça deve tomar como inspiração a experiência do Supremo Tribunal Federal com a repercussão geral. A tendência é que as decisões sob esse novo rito tenham caráter vinculante e absorvam os julgamentos de recursos repetitivos.

10 de outubro de 2022

Filtro da relevância para julgamento do recurso especial no STJ foi criado neste ano
Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Essa é a interpretação feita por membros do STJ dois meses após a promulgação da Emenda Constitucional 125/2022. A norma determina que os recorrentes demonstrem a relevância das questões de Direito federal infraconstitucional como requisito para admissão dos recursos especiais.

O filtro da relevância tem inspiração justamente na repercussão geral, criada na reforma do Judiciário de 2004 e responsável por racionalizar o trabalho do STF. Desde sua implementação, em 2007, o número de recursos em tramitação na corte caiu de 120 mil naquele ano para meros 13 mil em 2022.

No Supremo, a definição do que é, de fato, merecedor de repercussão geral foi construída a cada caso apreciado. A lei se limita a prever que a ação trate de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”, conforme o artigo 1.035 do Código de Processo Civil.

Os casos em que a repercussão geral é reconhecida são separados e enumerados em temas. Os julgamentos são feitos pelo Plenário e geram uma tese jurídica, que tem observância obrigatória pelas demais instâncias. Os processos são amplamente debatidos, admitem audiência pública e intervenção de amici curiae (amigos da corte).

No STF, repercussão geral racionalizou trabalho e derrubou tramitação em 80%
Foto: Nélson Jr. (SCO/STF)

Modelo pronto
Para o ministro Mauro Campbell, a coerência sistêmica presente na legislação permite afirmar, em princípio, que a repercussão geral será um modelo a ser seguido pelo STJ quando chegar a hora de colocar em prática o filtro da relevância. Sua forma de implementação deve ser definida por meio de lei ordinária.

“Evidentemente, o legislador pode apresentar solução diversa. Entretanto, penso eu que toda a comunidade jurídica e o próprio STJ ganhariam diante da possibilidade de uso da experiência exitosa do STF nesses 15 anos, inclusive evitando erros e a aproveitando os acertos da gestão da repercussão geral”, afirmou o magistrado em um evento sobre o tema.

“Penso que a nossa tendência é espelhar a experiência do STF no tratamento da repercussão geral”, concordou o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, chamando a atenção para o uso do sistema virtual de votação nos julgamentos sobre a admissibilidade dos temas, o que poderá ser replicado no STJ.

A EC 125/2022 fixou que, para que seja negada a tramitação pelo critério da relevância, será necessária a manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento no STJ — ainda não se sabe se isso caberá às turmas de julgamento (órgão fracionário) ou às seções (órgão uniformizador).

O critério da relevância será analisado apenas nos casos em que ela não for presumida. A emenda traz cinco hipóteses de admissão automática dos recursos: ações penais; de improbidade administrativa; cujo valor ultrapasse 500 salários mínimos; que possam gerar inelegibilidade; e que contrariem jurisprudência do STJ.

Para Mauro Campbell, comunidade jurídica e STJ ganhariam usando experiência do STF
Rafael Luz

Absorção dos repetitivos
A emenda também prevê que outras hipóteses de relevância presumida podem ser acrescentadas por lei. Uma delas, já cogitada pelos ministros, envolve as ações coletivas, que cresceram em importância após o CPC de 2015 e por razões de política judiciária.

Para o ministro Sanseverino, isso causará profundo impacto no julgamento de recursos repetitivos, que hoje são o principal instrumento de uniformização de interpretação da lei federal.

“Como um número de casos da relevância vai ser relacionado a demandas repetitivas, a tendência é que a relevância acabe absorvendo o recurso especial repetitivo. Claro, vamos ter a relevância não só nas demandas repetitivas, mas penso que essa é uma tendência.”

Isso foi, inclusive, o que aconteceu com o Supremo Tribunal Federal, para o qual existe a previsão do recurso extraordinário repetitivo. “Ele está previsto no CPC, mas ninguém fala sobre. A repercussão geral absorveu toda essa dinâmica”, explicou Sanseverino.

Criados pela Lei 11.672/2008, os repetitivos permitiram ao STJ afetar mais de mil temas e fixar teses vinculantes de amplo impacto. Apesar disso, eles não tiveram o efeito esperado, pois foram incapazes de fornecer pacificação social e não resolveram o problema do excessivo número de processos recebidos pelo STJ.

A consequência é que, 14 anos depois, a corte de uniformização do Direito federal ainda se dedica a julgar casos sobre guarda compartilhada de animais de estimação ou Habeas Corpus impetrados em favor de animais de zoológico.

“Não foi para isso que esse tribunal foi instalado. E daí o sistema judiciário nacional vem adoecendo em proporções galopantes”, criticou o ministro Mauro Campbell.

Para Sanseverino, tendência é relevância absorver casos de recursos repetitivos
Gustavo Lima/STJ

Efeito vinculante
Se os julgamentos pelo critério da relevância têm o objetivo de racionalizar o trabalho do STJ e permitir que ele se torne, finalmente, uma corte de fixação de teses e de uniformização, então a consequência mais direta do seu uso será conferir a esses casos a vinculação que o sistema de precedentes em formação no Brasil exige.

“Isso para mim é o mais importante: saber que, na medida em que a seção respectiva declarar a relevância naquele feito, e o mérito recursal for enfrentado, com a tese, obviamente estaremos a fotografar a figura do artigo 927 do CPC, a dar uma vinculação desse precedente”, disse o ministro Campbell.

A norma citada lista as hipóteses em que os juízes e tribunais deverão observar decisões da instância especial. Entre elas, estão acórdãos em incidentes de assunção de competência, recursos especiais repetitivos e os enunciados das súmulas do STJ.

“A partir do momento em que começarmos a estabelecer teses jurídicas sobre os referidos temas no mérito, ao menos em linha de principio, iremos, sim, formar precedentes vinculantes que impedirão o rejulgamento da mesma matéria, salvo hipótese de overruling ou distinghuising“, reforçou o ministro Campbell.

“Como corte de precedentes, a perspectiva é, exatamente na mesma linha do que já temos com os repetitivos, termos precedentes com maior força vinculativa e também mais qualidade. E aí vamos ter de usar mais a técnica da audiência pública, abrir mais para amici curiae“, disse o ministro Sanseverino.

2ª Seção só fixa teses quando a matéria já foi debatida e amadurecida pelas 3ª e 4ª Turmas

Adaptação
Esse cenário deve obrigar o STJ a fazer algumas adaptações relevantes na forma como trabalha. Uma delas, destacada pelo advogado Omar Paixão Cortes, será apreciar temas de relevância reconhecida e fixar teses antes mesmo de formar precedentes.

Há na corte alguns colegiados que repudiam essa prática. A 2ª Seção é o melhor exemplo: nela, a fixação de teses por repetitivos só é analisada depois que a discussão jurídica já foi devidamente enfrentada e amadurecida em julgamentos de casos concretos na 3ª e na 4ª Turmas.

“No STF, com essa utilização casada, a repercussão geral funciona quase como incidente de assunção de competência: julga-se para evitar a propagação de processos e de decisões. Muitas vezes, o Supremo julga para decidir se tem repercussão geral sem ter apreciado a matéria afetada”, disse Cortes.

Já o advogado Georges Abboud, um dos organizadores do evento na sede do STJ que discutiu a arguição de relevância no recurso especial, destacou o potencial impacto da instituição desse novo filtro.

“A mudança é relevante, a legislação que virá será relevante, mas nada é mais relevante do que a jurisprudência que será consolidada. O desenho da relevância e sua funcionalidade vão demandar atualização constante de uma jurisprudência que será formada pelo STJ.”

*Por Danilo Vital – correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2022, 8h47