A diferenciação promovida pelo Superior Tribunal de Justiça entre créditos de ICMS e benefícios fiscais relacionados a esse tributo, para fins de incidência na base de cálculo de IRPJ e CSLL, tem o potencial de agravar a histórica guerra fiscal entre os estados, na busca por tornarem-se mais atrativos para empresas de grande porte.
27 de abril de 2023
A possibilidade desse efeito deletério foi levantada em diversas sustentações orais feitas pelas partes e por amici curiae (amigos da corte), na sessão de julgamento da 1ª Seção na quarta-feira (27/4), e confirmada por tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
A guerra fiscal consiste na disputa entre unidades da federação via concessão de benefícios envolvendo a cobrança do ICMS. Em regra, essas benesses só poderiam ser concedidas mediante autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), órgão composto por representantes de todos os estados e do Distrito Federal.
O que acontece, na prática, é que os estados escolhem esses benefícios de forma unilateral para atrair empresas e gerar investimento, riqueza e renda, ainda que ao custo de efetiva arrecadação fiscal e de ampla judicialização, em ações no Supremo Tribunal Federal.
Com essa decisão, o STJ tornou uma parte desses incentivos menos atrativa do que as demais, o que certamente vai gerar movimentação fiscal. O ponto central é a inclusão dos valores relativos a essas benesses na base de cálculo de IRPJ e CSLL, impostos de competência da União e que incidem sobre o lucro.
Os montantes obtidos pelas empresas a título de crédito presumido de ICMS não integram a base de cálculo de IRPJ e CSLL, segundo posição da 1ª Seção firmada em 2017.
Já os demais benefícios fiscais sobre o ICMS — redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, diferimento e outros — em regra serão tributados a título de IRPJ e CSLL, a não ser que a empresa cumpra os requisitos previstos no artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e no artigo 30 da Lei 12.973/2014.
Isso significa que tais benefícios fiscais precisam ter sido publicados até início de produção de efeitos da LC 160/2017 ou precisarão ser registrados em conta de reserva de lucros, que pode ser usada pelas empresas para absorção de prejuízos ou aumento de capital social.
Ou seja, as empresas estarão impedidas de usar tais valores em situações que lhes confiram a qualidade de lucro ou renda. Se os ganhos decorrentes dos benefícios fiscais forem distribuídos aos sócios, por exemplo, haverá incidência de IRPJ e CSLL. O STJ inclusive citou à Fazenda Nacional a possibilidade de apurar esse desvirtuamento.
Portanto, será mais fácil e mais atrativo aos estados e ao Distrito Federal transformar esses benefícios fiscais em outros que se adequem à hipótese do crédito presumido de ICMS. Seria esse o palco de uma renovada guerra fiscal em breve — já que a posição do STJ está com eficácia suspensa por liminar concedida pelo ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal.
Glosa de créditos
Há um fator que pode intensificar o problema, na avaliação dos advogados consultados pela ConJur. O ICMS é um tributo não cumulativo, cujo cálculo consiste na diferença entre o tributo destacado na nota fiscal quando a mercadoria ingressa em seu estabelecimento e o mesmo tributo no momento em que ela é revendida por um preço maior.
Um artigo recente dos advogados Fabrizio Cândia dos Santos e Simone Anacleto exemplifica a situação. Uma mercadoria adquirida a R$ 100, com incidência de R$ 20 a título de ICMS, e revendida a R$ 200 — o que geraria outros R$ 50 de ICMS — vai causar o recolhimento de R$ 30 de imposto pelo contribuinte.
No crédito presumido, o estado acrescenta nessa conta um valor que pode ser descontado pelo contribuinte, mas que é fictício e não corresponde a nenhuma entrada com ICMS destacado. Quando essas mercadorias cruzam estados e passam a submeter a diferentes regras fiscais, não raro os fiscos de destino não reconhecem o crédito, para evitar um esvaziamento da própria arrecadação. “Isso acaba aumentando a possibilidade de guerra fiscal”, explica Arthur Barreto, do Donelli, Abreu Sodré e Nicolai Advogados.
“No passado era comum os estados questionarem a glosa de crédito de ICMS sobre parcela presumida, e o tema pode voltar à tona”, avisam Fábio Kawano e Maria Danielle Rezende de Toledo, do Lira Advogados. Eles criticam a decisão. Dizem que os estados terão que se reorganizar para rever benefícios e fomentar a manutenção das empresas em seus territórios. “As empresas vão simplesmente repassar o esvaziamento dos benefícios para a próxima etapa da cadeia e, ao final, consequentemente, o consumidor final acabará pagando a conta.”
Já na opinião de Julia Ferreira Cossi Barbosa, do Finocchio & Ustra Advogados, o trecho da tese que permite retirar benefícios do ICMS da incidência de IRPJ e CSLL é uma válvula de escape que pode amenizar a guerra fiscal. “Desde que preenchidos os requisitos previstos na lei pela empresa, os benefícios concedidos poderão ser excluídos da base de cálculo”, explica.
Segundo Leonardo Roesler, da da RMS Advogados, a tese do STJ reconheceu a legalidade e a importância dos benefícios fiscais concedidos pelos estados, desde que tratados como subvenção para investimento. “Esses benefícios fiscais podem ser ferramentas importantes para fomentar o desenvolvimento econômico e atrair investimentos”, pontua.
Na tribuna da 1ª Seção do STJ, o tema da guerra fiscal foi levantado pelo advogado Vinícius Jucá Alves, da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), que atuou como amicus curiae, e pelo professor Heleno Torres, que representou uma das empresas recorrentes.
Pacto federativo
Arthur Barreto destaca ainda que a tese do STJ sobre o tema ignora aspectos relevantes do sistema tributário brasileiro, ao permitir que a União se aproprie de renúncias fiscais dos estados, “o que pode ser visto como violação ao pacto federativo”.
Essa interpretação do federalismo brasileiro, no sentido de ser cooperativo e buscar harmonia entre os entes da República, foi destacada pela ministra Regina Helena Costa e influenciou diretamente o julgamento da 1ª Seção de 2017 sobre a retirada dos créditos presumidos do ICMS da base de cálculo do IRPJ e CSLL.
“O pacto federativo é direito constitucional garantido, que deveria ser observado de forma ampla, e não apenas para o crédito presumido, e independentemente de sua destinação”, concorda a advogada Júlia Ferreira Cossi Barbosa.
Renato Silveira, do Machado Associados, também entende que a tributação pelo IRPJ e pela CSLL significa admitir a possibilidade de a União anular o benefício fiscal de ICMS concedido por outro ente, quebrando o Pacto Federativo. “Representa a tributação das renúncias de receitas dos estados e Distrito Federal e a indevida majoração da carga tributária dos contribuintes, tendo em vista a ausência de acréscimo patrimonial.”
Na tribuna, a procuradora da Fazenda Nacional Anelize Lenzi Ruas de Almeida defendeu que a quebra desse pacto ocorreria, na verdade, por outro viés: pelos estados, em relação à União. Ao conceder benefícios fiscais ao ICMS, eles estariam reduzindo as bases da tributação federal sobre renda e lucro.
“Não raro, esse esvaziamento é integral. Vemos no cotidiano. O valor equivalente a reduções e isenções pode ultrapassar facilmente a margem de lucro das empresas”, criticou. Ela acrescentou, ainda, que o tema afeta também os municípios, já que eles têm direito a uma parte da arrecadação do IRPJ.
REsp 1.945.110
REsp 1.987.158
*Por Danilo Vital – correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de abril de 2023, 10h46