10 de janeiro de 2022

Com a adoção em larga escala do teletrabalho durante a crise sanitária decorrente da Covid-19, os limites entre a vida profissional e a pessoal ficaram borrados para muitos trabalhadores. Diante disso, ganhou corpo na comunidade jurídica a discussão em torno do direito à desconexão. O conceito trata da prerrogativa que todo trabalhador tem de poder aproveitar o tempo fora de sua jornada de trabalho para atividades de lazer, familiares ou qualquer outra de seu interesse que não esteja relacionada à atividade profissional. 

Discussão em torno do direito à
desconexão deve ganhar corpo neste ano

Não há previsão legal expressa no Brasil sobre o direito à desconexão. O parágrafo único do artigo 6º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — com redação dada pela Lei 12.511/2011 — apenas diz que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. E o Capítulo II-A, incluído pela reforma de 2017, não faz menção alguma à desconexão.

Ricardo Calcini, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno e colunista da ConJur, explica que, embora não tenha previsão legal específica, o direito à desconexão é tido hoje como um direito social e fundamental de todo trabalhador.

“A pandemia impactou sobremaneira na vida dos empregados, na medida em que se passou a exigir uma maior fiscalização e monitoramento do labor prestado à distância”, diz ele.

Números modestos
Apesar do cenário, contudo, o número de processos em que o direito à desconexão é evocado está longe de refletir o debate sobre o tema.

Levantamento da Data Lawyer, feito a pedido da ConJur, aponta que o número de processos com a expressão “direito à desconexão” e afins tem caído desde 2018. Nos últimos seis anos, 2015 foi o que teve o maior número de processos em que a expressão aparece. Foram 10,5 mil demandas judiciais em que o direito à desconexão foi citado. Em 2018, porém, o número caiu para 3.435 processos. Em 2019, saltou para 4,3 mil e em 2020 foram 4.159.

O ano de 2021 teve 3.492 processos em que o termo foi citado. A cidade que concentrou o maior número de processos relacionados a direito à desconexão foi São Paulo (3.406), seguida de Rio de Janeiro (2.404) e Franca (2.209).

Nos processos, a comprovação do desrespeito ao direito à desconexão é um tema controverso. No julgamento do processo ATOrd 1000234-38.2021.5.02.0263, o juízo da 3ª Vara do Trabalho de Diadema entendeu que o regime de sobreaviso só caracteriza desrespeito ao direito à desconexão se comprometer a liberdade de locomoção do funcionário. No caso concreto, uma trabalhadora tirava dúvidas pelo aplicativo WhatsApp, contudo, não era requisitada a ir até o local de trabalho. O pedido foi indeferido. 

Em outro exemplo, o juízo da 35ª Vara do Trabalho de São Paulo considerou que não ficou comprovada no julgamento do ATOrd 1000323-03.2020.5.02.0035 lesão ao direito à desconexão de um funcionário que desempenhava suas atividades no horário das 11h às 24h, escala 6 x 1, com média de 30 minutos de intervalo intrajornada.

“O conjunto probatório não demonstrou que o autor, em face da jornada laborada, tenha sido privado de sua vida particular ou convívio familiar ou social em razão do trabalho”, escreveu a juíza Juliana da Cunha Rodrigues na decisão.

Por outro lado, no julgamento do ROT 0024431-46.2020.5.24.0021/MS, os desembargadores da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (MS) condenaram uma empresa a indenizar a funcionária por violação ao direito à desconexão. No caso concreto, a trabalhadora cumpria jornada das 5h30 às 20h30 de segunda-feira a sábado — inclusive em feriados —, e aos domingos das 7h30 às 18h30. Os julgadores entenderam que essa jornada comprometia o descanso e o convivio social e familiar, violando, assim, o direito à desconexão.

Apesar do número de processos em que o direito é evocado não ter aumentado, Calcini acredita que, como a tendência atual é que o esquema de home office seja intensificado — por cortesia da variante ômicron —, as empresas tomarão cautelas ainda maiores em 2022. “Já é esperado o aumento do número de ações trabalhistas após a decisão do STF que julgou inconstitucional a exigência dos honorários advocatícios sucumbenciais”, aponta ele.

Calcini se refere ao julgamento da ADI 5.766. Na ocasião, oPlenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, declarou a inconstitucionalidade do caput e do parágrafo 4º do artigo 790-B e do parágrafo 4º do artigo 791-A da CLT. A corte também declarou a constitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 844. Os dispositivos foram inseridos na CLT pela reforma trabalhista.

Regramento necessário?
O advogado Matheus Gonçalves Amorim, sócio do SGMP Advogados, explica que o direito à desconexão no Brasil deriva de uma construção jurisprudencial, a partir da interpretação do texto constitucional e da Lei 605/49, partindo da premissa de que o empregado tem direito a utilizar o seu tempo livre da maneira que bem entender.

“Justamente por esse motivo, hoje tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 4.044/2020, que visa a regulamentar a matéria, instituindo disposições que, em nosso entender, são pouco razoáveis quando tratam do tema”, explica.

O PL 4.044/2020, de autoria do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), pretende disciplinar o tema. O texto determina que o empregador não poderá solicitar normalmente a atenção de um empregado em regime de teletrabalho, por telefone ou por qualquer meio de comunicação eletrônica, como e-mail e WhatsApp, fora do horário de trabalho.

Conforme o PL, acordos ou convenções coletivas poderão admitir exceções, mas esse tipo de contato deverá contar como hora extra.

O PL também determina que o trabalhador em período de férias seja excluído de grupos de mensagens de trabalho e que sejam removidos de seus dispositivos eletrônicos aplicativos voltados exclusivamente para o uso no trabalho .

Crítico da proposta, Amorim argumenta que o PL não leva em conta a realidade do século 21 e o avanço dos meios de comunicação.

“Tal entendimento, principalmente num contexto de implantação do trabalho a distância, no qual o empregado tem liberdade de definição dos seus horários de trabalho, sobretudo no cenário imposto pela pandemia, geraria situações absurdas, em que até mesmo mensagens de cunho pessoal, como uma parabenização ou até mesmo cumprimento, seriam consideradas ofensivas”.

Amorim defende que os artigos 62 e 244 da CLT já preveem exceções nas quais o direito à desconexão durante o período de folga pode ser mitigado.

O advogado especialista em Direito do Trabalho Empresarial Fernando Kede, por sua vez, acredita que é preciso estabelecer diretrizes claras na lei trabalhista e alerta para a necessidade de descanso. “Estabelecer o direito à desconexão para garantir o respeito ao período de descanso e à intimidade pessoal e familiar sem ter qualquer contato com o serviço, seja ele por meio de mensagens, e-mails ou ligações, é essencial para evitar prejuízos à saúde mental dos funcionários, diminuindo o risco de as empresas serem acionadas na Justiça”, opina ele.

Em artigo publicado na ConJur, o consultor jurídico da FecomercioSP, Eduardo Pastore, defende que ultraconexão se coíbe com mudança de comportamento, e não das leis. Ele cita o julgamento do AIRR-2058-43.2012.5.02.0464, em que a 7ª Turma do TST, por unanimidade, desproveu o agravo, permitindo que uma trabalhadora obtivesse o direito de ser indenizada por ofensa ao direito à desconexão.

“Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro, ainda que não trate objetivamente do direito à desconexão, já dispõe dos mecanismos que funcionam como normas de contenção da jornada de trabalho”, defende.

Ainda não é possível apontar um entendimento consolidado sobre o direito à desconexão. No mês passado, a juíza substituta Adriana Manta da Silva, da 24ª Vara do Trabalho de Salvador, condenou a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba) a pagar horas extras a uma trabalhadora que atendia ligações e respondia mensagens por meio de aplicativos eletrônicos aos fins de semana.

“O atual entendimento jurisprudencial leva sempre em conta uma análise que deve ser feita caso a caso, entre a disponibilidade do empregado, somado ao grau de subordinação, e, ainda, o tempo de serviço efetivo e, em todos os casos, sempre tendo como métrica o princípio da razoabilidade”, explica Matheus Gonçalves Amorim.

A discussão não fica restrita ao Brasil. Em 2016, a França aprovou a Lei da Desconexão, que regulou pela primeira vez naquele país o direito à desconexão de forma ampla. Itália e Portugal seguiram caminho parecido. Com o avanço da tecnologia, o crescimento do home office e a decisão do STF no julgamento da ADI 5.766, a discussão em torno do tema pode desaguar na Justiça.


ATOrd 1000234-38.2021.5.02.0263
ATOrd 1000323-03.2020.5.02.0035
ROT 0024431-46.2020.5.24.0021/MS

Fonte: Revista Consultor Jurídico