Para refletir as mudanças ocorridas na sociedade brasileira desde 2002, o Código Civil deve ser atualizado de forma a incorporar os avanços tecnológicos, as novas configurações das relações familiares e a maior conscientização quanto à necessidade de preservação do meio ambiente. É o que avaliam civilistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

18 de setembro de 2023

Código Civil deve mudar para refletir avanços tecnológicos, dizem especialistas
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O Senado instalou em agosto comissão de juristas que vai propor atualização do Código Civil. A comissão será presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, e terá 34 membros, incluindo o presidente, um vice-presidente e dois relatores.

A comissão terá prazo de 180 dias para elaborar e entregar à Presidência do Senado um anteprojeto de lei com as atualizações propostas para o Código Civil. Depois disso, a própria Presidência encaminhará o texto, na forma de projeto de lei, para análise dos senadores, passando pelas comissões e pelo Plenário.

Os relatores da comissão serão Flávio Tartuce, professor da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, e Rosa Maria de Andrade Nery, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo. O vice-presidente será o ministro Marco Aurélio Bellizze, do STJ.

O Código Civil completou 20 anos em vigor em janeiro. Nessas duas décadas, a norma promoveu a integração com a Constituição Federal de 1988 e a jurisprudência e estimulou a formação de novas gerações de civilistas. Ainda que tenha limitações que expressam as contradições dos diferentes períodos pelos quais sua tramitação se estendeu, a lei não precisa de grandes mudanças, avaliaram especialistas ouvidos pela ConJur no começo de 2022.

Mesmo assim, a norma enfrenta as marcas do tempo. Afinal, ela começou a ser elaborada por uma comissão de juristas em 1969. Seis anos depois, o anteprojeto de um novo código civil foi entregue ao governo Ernesto Geisel. O texto foi publicado no Diário Oficial e foi feita a solicitação a diversas instituições culturais e jurídicas do país para que colaborassem, encaminhando sugestões.

Com alterações, o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1983. Contudo, devido à redemocratização do Brasil e à instauração da Assembleia Nacional Constituinte, a proposta foi deixada de lado. No fim dos anos 1990, o projeto voltou a ser discutido e diversas emendas foram feitas para atualizá-lo. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, o novo Código Civil foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 10 de janeiro de 2002.

Principais temas
O integrante da comissão de juristas Ricardo Campos, professor da Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), elenca as principais modificações ou temas de interesse para discussão no contexto da reforma do Código Civil:

1) Reconhecimento do direito à proteção de dados pessoais enquanto direito da personalidade;

2) Reconhecimento de atos jurídicos eletrônicos, a fim de introduzir a possibilidade de elaboração, revisão e extinção de atos jurídicos em sentido amplo no ambiente digital;

3) Previsão sobre contratos eletrônicos, com o objetivo de introduzir na legislação dispositivos voltados para as contratações que ocorrem na modalidade eletrônica, atualizando as previsões vigentes sobre formação de contratos, em especial as disposições sobre contratos entre ausentes e as questões relacionadas ao envio de propostas e de aceites;

  • a) Dentro de contratos eletrônicos, a regulação dos chamados smart contracts, ou contratos inteligentes, que são os contratos autoexecutáveis, redigidos em linguagem computacional e baseados em tecnologias com blockchain e criptografia, que permitem a execução automática das cláusulas quando certas condições acordadas, inseridas na programação, ocorrem.

4) Reconhecimento e regulamentação, no código civil, das assinaturas eletrônicas, reconhecendo-as como meio de manifestação da vontade válido para atos jurídicos em sentido amplo, observando as distinções necessárias para o uso de cada modalidade de assinatura eletrônica (simples, avançada e qualificada), a depender da espécie de ato jurídico em questão e do grau de mutação jurídico-real do seu objeto;

5) Reconhecimento da blockchain e tokenização como meios para realização de atos jurídicos, introduzindo no Código a previsão de utilização de tokens, i.e., representações digitais de ativos reais com valor comercial, sendo agregada, ou não, à parte sobre smart contracts;

6) Previsão de criptomoedas como meio de pagamentos, ainda que possivelmente a previsão se limite à utilização da Drex (anteriormente denominada “Real Digital”);

7) Rediscussão sobre responsabilidade civil, aprofundando os debates sobre responsabilidade civil por uso de sistemas de inteligência artificial;

8) Em relação ao Direito das Sucessões:

  • a) Reconhecimento da chamada “herança digital”, com previsões que regulem os ativos digitais no post-mortem, garantido clareza e previsibilidade sobre quem poderá acessar, como se dará o acesso e a manutenção digital de itens como fotos, registros de voz, vídeos e textos armazenados em serviços de nuvem, em redes sociais e em aplicativos de mensageria após o falecimento do titular da conta;
  • b) Previsão sobre possibilidade do “testamento digital”, com inserção de previsões que permitam a realização segura de testamentos digitais, com uso de videoconferência para verificação inequívoca da manifestação da vontade do testador e de assinaturas eletrônicas, via certificação digital, pelo testador, pelas testemunhas e pelo notário responsável pela formalização do ato.

Propostas de alterações
Gustavo Tepedino
, professor de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, afirma ser preciso ter prudência nas alterações. Afinal, o Código Civil consolidou-se nessas duas décadas, guiado pelos princípios e valores constitucionais. E muitas incongruências legais já foram superadas pela jurisprudência.

Mas algumas alterações precisam ser feitas. Tepedino destaca a necessidade de sistematizar prazos prescricionais compatíveis com a velocidade da sociedade tecnológica. “Não há qualquer sentido em se aplicar prazo de dez anos para o exercício de pretensão de responsabilidade contratual quando, no caso dos graves acidentes de consumo, em que há vulnerabilidade das vítimas, o prazo é de cinco anos”.

A seção de Direito Empresarial está defasada, sendo indispensável a sua revisão e a introdução de institutos próprios da sociedade contemporânea, como o trust, o negócio fiduciário e as garantias autônomas, avalia.

Novas figuras também devem ser incorporadas à parte dos direitos reais, segundo o professor da Uerj, mencionando o time-sharing e novas modalidades de investimentos imobiliários. Por outro lado, diz, a autonomia da posse, consagrada pela jurisprudência atual, precisa ser enfatizada e prestigiada.

O Direito de Famílias e de Sucessões deve respeitar a pluralidade das entidades familiares e a liberdade de constituição dos vínculos socioafetivos, independentemente de dogmas religiosos e culturais, na visão do docente.

“Parece indispensável que a reforma possa traduzir os princípios constitucionais da família democrática e da instrumentalidade das entidades familiares à plena realização de seus integrantes. Por outro lado, há que se rever a própria de solidariedade familiar no âmbito das sucessões, admitindo-se, em relações conjugais em que inexista vulnerabilidades, a ausência de vocação hereditária necessária entre cônjuges e companheiros”.

Ele também defende a autorização do planejamento sucessório, em respeito à autonomia privada. “A hostilidade do Código Civil ao planejamento sucessório funda-se em ultrapassada compreensão de que os contratos relativos à sucessão seriam eticamente reprováveis, estimulando o desejo macabro dos herdeiros para com a antecipação da morte do autor da herança (pacta corvina)”, explica Tepedino.

Casamento e meio ambiente
Cláudia Franco Corrêa
, professora de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sugere a alteração “urgente” do artigo 1.514 do código, por estar desassociado da instituição do casamento igualitário, que foi aceito no Brasil em razão das consequências da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277”.

Alterações na norma devem aumentar proteção ao meio ambiente
Agência Câmara de Notícias

O dispositivo estabelece que “o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”.

Em 2011, o STF permitiu a união estável homoafetiva. A Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável entre homem e mulher e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). Os ministros concluíram que a união homoafetiva deveria ser considerada a quarta forma de família, com todos os seus efeitos jurídicos. Depois da decisão, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 175/2013, que proíbe que cartórios recusem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Uma segunda mudança defendida por Cláudia Franco é a admissão que os seres sencientes são dignos de tutela estatal, devendo ser reconhecido, ao menos, o seu direito ao não sofrimento.

“Temos os exemplos bem-sucedidos da França e da Nova Zelândia, que reconheceram legalmente que certos animais são seres sencientes, conferindo-lhes capacidade de emoções positivas e negativas, assim como admitindo que há certo grau de consciência de suas relações, inclusive com o ser humano”, destaca a professora da UFRJ.

Nessa mesma linha, a professora de Direito Civil da Universidade de São Paulo Patrícia Iglecias ressalta que os animais, embora estejam recebendo a guarida do Direito de Família no âmbito judicial, continuam retratados no Código Civil como coisas, com referências expressas à venda, usufruto de suas crias e penhor.

“Outro tema que merece atenção é o abandono como forma de perda da propriedade. Nos dias atuais, em especial em função do reconhecimento da necessidade de uma adequada gestão de resíduos, não se justifica mais que o abandono de bens móveis possa gerar a perda da propriedade. É tempo, portanto, de continuar os avanços trazidos pelo Código Civil e incorporar o conceito de dupla titularidade dos bens ambientais, que pertencem ao titular direto bem como a toda a sociedade. Em outras palavras, trata-se de incorporar de forma expressa o conceito de meio ambiente como direito intergeracional, refletindo assim a previsão constitucional”, analisa a docente.

Para além dos direitos reais, ressalta Patrícia Iglecias, diversos institutos devem refletir os aspectos ambientais, sociais e de governança em suas previsões, como a função socioambiental da empresa e do contrato. Ela ainda diz que não é possível ignorar as mudanças climáticas e seus reflexos, sobretudo em sede de responsabilidade.

Personalidade e responsabilidade
O professor de Direito Civil Carlos Frederico Bentivegna, autor do livro Liberdade de expressão, honra, imagem e privacidade, cita dois pontos do Código Civil que precisam de alteração.

O artigo 20 condiciona a proteção à imagem de seu uso não autorizado desde que esse uso atinja “a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Para o docente, essa disposição é inconstitucional, uma vez que o inciso X do artigo 5º da Carta Magna estabelece que é inviolável “a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Já o artigo 944 do Código Civil determina, ao tratar das reparações resultantes da responsabilidade civil, que “a indenização mede-se pela extensão do dano”. Ou seja, não pode ultrapassar o valor do dano ocasionado. Mesmo assim, aponta Bentivegna, quase toda a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça justifica a quantificação “pelo fato de este valor cumprir as funções de punir o autor do dano [moral], dissuadi-lo de novos ataques e funcionar como prevenção geral e exemplar”.

“Ora, mas não se permite reconhecer tal função punitiva ou dissuasória (preventiva) da responsabilidade civil se não houver uma autorização legislativa para que o valor da indenização se meça também pelo grau de culpa, eventual reincidência, superioridade dos lucros almejados pelo agente em relação ao valor indenizatório singelamente calculado sobre o dano, entre outros pontos”, avalia.

Dessa maneira, o civilista sugere o acrescimento de mais um parágrafo ao artigo 944. “O parágrafo único já permite diminuir a indenização para menos do que o valor do dano, se este for grande e a culpa pequena. É preciso transformá-lo em parágrafo 1º e criar um parágrafo 2º, dizendo que a indenização pode também ser majorada para além do valor do dano, a título de penalização (pena privada), diante da situação contrária”.

*Por Sérgio Rodas – correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 17 de setembro de 2023, 7h36