O Judiciário brasileiro tem testemunhado a expansão do financiamento de litígios. Esse instrumento, que já é consolidado na arbitragem há mais de uma década, começa a aparecer com mais frequência em processos judiciais de portes variados, que vão de grandes disputas empresariais até pequenas causas nos juizados especiais.

 

 

 

 

 

11 de agosto de 2025

Desembargadores do TRT-1 decidiram excluir do polo passivo de ação de execução empresa não citada anteriormente

Financiamento de litígios funciona sem regras claras no Judiciário (Feepik)

 

Especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico veem com bons olhos o avanço desta ferramenta, que permite que as partes com poucos recursos busquem capital externo para cobrir custas judiciais, honorários, perícias e outras despesas.

A chegada de ações bilionárias aos tribunais, porém, tem levantado questionamentos e exposto divergências entre magistrados sobre as regras e os limites desta prática.

A principal controvérsia é se a parte financiada tem ou não a obrigação de revelar quem são seus apoiadores e detalhes do contrato entre eles. Para os estudiosos, o segredo sobre isso abre margem para conflitos de interesse — uma relação indevida entre os patrocinadores e os julgadores, por exemplo.

As empresas alvos de processo têm alegado, nos autos, que a presença oculta de um parceiro pode incentivar ações judiciais abusivas, que visam apenas sufocar financeiramente a parte contrária.

“O financiamento de litígios tem um propósito muito claro de dar acesso à Justiça, mas é preciso evitar a litigância de má-fé. Um processo judicial pode ser aberto hoje, no Brasil, com a finalidade exclusiva de enriquecer uma das partes. Então esse financiamento, se for utilizado indevidamente, pode contribuir para o aumento da judicialização”, avalia o advogado Ricardo Freitas Silveira, sócio do escritório LBCA e autor de uma tese de doutorado sobre o assunto.

O mercado do litígio

A monetização de ativos judiciais, em si, não é novidade. Práticas como compra de precatórios, cessão de créditos e honorários de êxito já são tradicionais. Mas foi só nos últimos anos que ganhou força o financiamento propriamente dito: um patrocinador externo, que pode ser uma empresa ou fundo privado, cobre os custos de uma ação ajuizada por terceiros em troca de participação nos resultados em caso de vitória.

A maioria desses acordos é confidencial, o que dificulta a produção de dados sobre o tamanho do mercado no Brasil. Um dos poucos levantamentos é a pesquisa “Arbitragem em Números”, da advogada e professora Selma Lemes. O trabalho contabiliza anualmente, desde 2019, os procedimentos arbitrais que contam com aportes externos, mas não trata de ações judiciais.

O negócio era voltado inicialmente a grandes disputas judiciais ou arbitrais, mas tem alcançado pequenas e médias causas. Hoje existe financiamento para ações trabalhistas individuais, disputas de inventário e cobranças de indenização por relações de consumo, especialmente contra companhias aéreas.

“O financiamento de litígios é uma forma de monetizar ativos jurídicos que, de outra forma, poderiam ficar engessados por falta de capital. Muitas vezes a parte tem o direito, mas não tem o dinheiro para suportar uma longa contenda jurídica”, afirma Matheus Matos, sócio e head jurídico da MA7 Negócios, que tem o financiamento de litígio entre seus serviços.

Advogados alertam, no entanto, para a necessidade de regulamentação. O Código Civil tem um capítulo inteiro, entre os artigos 286 e 298, dedicado à cessão de crédito, mas muitas práticas atuais vão além do escopo da lei. Em países como Reino Unido e Austrália, que são referências no assunto, os códigos de conduta incluem medidas para evitar conflito de interesses nas ações.

“As grandes câmaras arbitrais do país já criaram normas sobre as principais questões do financiamento por terceiros, como a necessidade de revelar o financiador. Mas nas disputas judiciais a gente realmente não tem qualquer regulamentação por enquanto”, afirma o advogado Vinícius Eduardo Pereira dos Santos, mestre em Direito Processual Civil e autor de um livro e de uma dissertação sobre o tema.

As controvérsias

O caso mais recente trata de um desdobramento da falência do Banco Cruzeiro do Sul, em 2015. Os antigos donos da instituição, Luis Felippe Índio da Costa e Luis Octavio Azeredo Lopes Índio da Costa, cobravam indenização de R$ 2,4 bilhões do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), que foi administrador especial do Cruzeiro do Sul após intervenção do Banco Central. Na ação, que foi ajuizada em 2017 no TJ-SP, os autores afirmavam que a gestão do FGC contribuiu para a derrocada da instituição.

O FGC questionou nos autos se o processo contava com recursos de terceiros. Os banqueiros informaram haver um patrocinador, que teria aportado R$ 80 mil para as custas iniciais. O fundo, porém, sustentava que poderia haver outros financiadores porque os autores tinham “fôlego financeiro para sustentar diversas demandas judiciais por anos” apesar de estarem declaradamente falidos.

Na visão do FGC, essa informação era fundamental para que os magistrados avaliassem potenciais conflitos de interesses e soubessem “quem realmente está comandando o processo”.

No último dia 30 de julho, porém, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP confirmou a decisão de primeiro grau e negou o pedido do FGC. O desembargador Azuma Nishi, relator do pedido, afirmou em seu voto que a identificação dos financiadores dos custos do processo era irrelevante para a resolução do mérito.

“A informação requerida mostra-se destituída de relevância ou pertinência jurídica para o julgamento da ação revocatória, uma vez que todos os valores arrecadados serão revertidos à massa falida. Além disso, a existência de um financiador externo não compromete a imparcialidade do juízo”, afirmou o julgador.

O caso Braskem

Em outra ação que correu no TJ-SP,  isentou o economista José Aurélio Valporto de Sá Júnior de dar detalhes sobre seus financiadores em uma ação movida em 2018 contra a Odebrecht, atual Novonor. Valporto pedia que a empreiteira pagasse indenização de R$ 3,6 bilhões à Braskem, petroquímica controlada pelo grupo, por ter envolvido a subsidiária na ‘lava jato’.

O economista alegou à Justiça que foi lesado como acionista minoritário da Braskem apesar de só ter comprado ações da companhia em abril daquele ano, quando as investigações já tinham passado. Ele pagou menos de R$ 5 mil pela cota mínima de cem papéis e esperava que a ação lhe rendesse um prêmio de R$ 180 milhões — equivalente a 5% da indenização, como prevê o artigo 246 da Lei das S.A.

A Odebrecht acusou Valporto de ser um “litigante profissional”, que teria a prática de usar posições acionárias ínfimas para exigir grandes indenizações de seus alvos. Ele é autor de duas arbitragens e uma ação indenizatória contra a JBS com o mesmo argumento — de que foi prejudicado pelo envolvimento da empresa na ‘lava jato’.

Em maio de 2022, o juiz Eduardo Palma Pellegrinelli, da 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do TJ-SP, afirmou que o financiamento não era um “mero negócio privado” entre as partes e precisava ser esclarecido.

“Em que pese a necessária valorização da autonomia privada e a inquestionável possibilidade do financiamento de litígios, dependendo dos contornos do negócio jurídico, o financiamento do litígio tem consequências processuais inevitáveis”, escreveu o magistrado. Valporto chegou a apresentar três fundos como seus apoiadores, mas o magistrado considerou as explicações insuficientes.

Em segunda instância, porém, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP reverteu o entendimento. Para o colegiado, o ônus de comprovar o suposto abuso no ajuizamento da ação, por suposto interesse de terceiros no litígio, caberia à Odebrecht.

“Mostra-se totalmente irrelevante a perquirição sobre a identidade dos financiadores das despesas processuais”, afirmou o desembargador Natan Zelinschi de Arruda, relator do caso.