Rigor sobre gratuidade de Justiça deve se ater a má-fé e dúvida da parte contrária

A triagem mais rigorosa pelo Judiciário do pedido de gratuidade de Justiça, quando são exigidos documentos para além da mera declaração de hipossuficiência econômica, deve acontecer em casos de indícios de má-fé do requerente do benefício ou a partir de uma provocação da parte contrária, que tem o direito de levantar a dúvida.

5 de agosto de 2024

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Comprovação deve atender o contraditório, mas sem restringir acesso à Justiça

A avaliação é de advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Em São Paulo, por exemplo, a Justiça Estadual tem exigido diferentes documentos, e não só a declaração de hipossuficiência, a quem pleiteia a gratuidade de Justiça, que isenta taxas e outros pagamentos na ação — e não se confunde com a assistência judiciária gratuita, prevista constitucionalmente e prestada pela Defensoria Pública ou advogados conveniados.

O tema foi levantado pela desembargadora Débora Vanessa Caús Brandão, da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ela falou sobre a Justiça gratuita durante o 1º Congresso de Assistência Judiciária da OAB-SP e afirmou que, do ponto de vista prático do cotidiano da magistratura, não basta apenas a comprovação de hipossuficiência para que seja concedido o benefício.

Previsão no CPC

A gratuidade de Justiça é prevista pelo artigo 98 do Código de Processo Civil. A controvérsia sobre o pedido, no entanto, mora no artigo 99, também do CPC, segundo avalia Francisco Jorge Andreotti Neto, que preside a Comissão da Assistência Judiciária da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).

O § 3º do dispositivo estabelece que “presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”. Para o advogado, o TJ-SP tem afastado essa presunção ao julgar a gratuidade.

“O legislador infraconstitucional deixa evidente e cristalino o entendimento de que a simples alegação faz presumir hipossuficiência do declarante, consignado no § 4º do mesmo dispositivo, que ‘a assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade de Justiça’. E o artigo 100 da lei processual concede o prazo de 15 dias para que a parte contrária ofereça impugnação ao deferimento da gratuidade”, diz.

“Todavia, tantos os juízes singulares quanto o Tribunal de Justiça de São Paulo têm entendido de forma contrária a norma infraconstitucional, afastando a presunção prevista no § 3º do artigo 99 do CPC e exigindo que o jurisdicionado anexe, juntamente com sua alegação de hipossuficiência financeira, inúmeros documentos, inclusive quebrando seu sigilo fiscal e bancário”, completa Andreotti Neto, que é também conselheiro estadual da OAB-SP.

Indícios de má-fé

A pesquisadora Fernanda Tereza Melo Bezerra, do Núcleo de Processo Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Nupepro/Emerj), e o professor Dierle Nunes, da Universidade Federal de Minas Gerais, concordam que, não havendo indícios de má-fé no processo, a mera declaração deveria bastar.

“Ao juiz, entendo que somente é possível determinar a juntada de documentos capazes de comprovar a insuficiência alegada quando existirem nos autos elementos que demonstrem a ausência dos pressupostos legais, hipótese prevista no § 2º, do art. 99, CPC, dispositivo este que, ao meu ver, deveria estar no lugar do § 3º, e vice-versa”, diz Bezerra, que é também assessora do Núcleo de Cooperação Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Nunes acrescenta: “O sistema delineado pelo CPC cria a possibilidade de que, se porventura a pessoa não fizer jus ao benefício, ocorreria uma impugnação nos moldes do artigo 100, que permitiria, inclusive, que a pessoa que tivesse feito o requerimento de má-fé fosse apenada pelo pagamento de dez vezes as custas não adimplidas. Então, essa exigência fora das hipóteses que a própria lei estabelece, de haver fortes indícios de que a pessoa não faz jus ao benefício, me parece desarrazoado.”

Exigência adequada

O também professor José Rogério Cruz e Tucci, livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), diverge de ambos, por entender que os tribunais têm razão em exigir prova documental complementar à declaração exigida pela lei, embora pondere haver dificuldade de se produzir prova negativa de estado de pobreza.

“Para provar essa necessidade bastaria a declaração mais a cópia das últimas declarações de renda do litigante que vai bater às portas da Justiça”, diz o docente, sócio da banca Tucci Advogados Associados.

“Entendo também que uma Certidão do Distribuidor Civil seria interessante para demonstrar que o interessado não é um litigante habitual, que não deseja arcar com as custas judiciais”, afirma.

A advogada Maria Cristine Lindoso, associada ao escritório Trench Rossi Watanabe e professora voluntária da Universidade de Brasília (UnB), concorda com Tucci que a declaração tem presunção relativa de veracidade e, idealmente, deveria ser acompanhada de comprovação da real necessidade da gratuidade de Justiça.

“Mas o mais importante é reconhecer que a parte contrária tem a possibilidade de questionar essa declaração e suscitar dúvida quanto à verdadeira hipossuficiência. A partir disso, o magistrado deve determinar à parte que pretende receber o benefício a comprovação da sua situação de vulnerabilidade, sendo, então, imprescindível alguma prova concreta da situação de hipossuficiência”, afirma a pesquisadora em Direito Civil.

Critérios objetivos

Andreotti Neto diz que a questão poderá ser pacificada a partir do julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça do Tema 1.178, sob o rito dos recursos repetitivos,  que pretende “definir se é legitima a adoção de critérios objetivos para aferição da hipossuficiência na apreciação do pedido de gratuidade de Justiça formulado por pessoa natural, levando em conta as disposições dos arts. 98, 99, § 2º do Código de Processo Civil”.

“Enquanto o Superior Tribunal de Justiça não realizar o julgado desse tema, ainda teremos inúmeras decisões que conflitam a norma infraconstitucional”, afirma o conselheiro da OAB-SP.

Maria Cristine Lindoso contesta, no entanto, que a definição de critérios objetivos para reconhecer a hipossuficiência não é tarefa simples e pode ser prejudicial a grupos mais vulneráveis no acesso à gratuidade de Justiça.

“Uma mesma família pode apresentar o mesmo contracheque e ter situações de vulnerabilidade muito diferentes. Um homem solteiro que recebe dois salários mínimos vive em uma condição de vida. Uma mulher que recebe os mesmos dois salários mínimos e alimenta, além de si mesma, os filhos, os pais e um companheiro desempregado, vive em uma situação muito distinta. Por esses motivos, é difícil criar critérios tão objetivos”, explica.

Fernanda Tereza Melo Bezerra endossa: “Ao analisar a questão, não deve o magistrado voltar os olhos somente para os ganhos do requerente, mas também para os seus gastos, para o quanto ele precisa para manter as suas despesas. Muitas vezes, o requerente até recebe quantia considerável, mas não há como pagar as custas, as despesas processuais e honorários advocatícios, sem que isso traga prejuízo ao seu sustento.”

O professor Dierle Nunes alega que o escrutínio exagerado não pode igualmente causar prejuízos no acesso à Justiça aos mais vulneráveis, mesmo que sob o argumento de que a triagem pretende evitar prejuízos ao erário, uma vez que a maior parte do acervo do Judiciário vem de grandes litigantes, como o Poder Público.

“Tive situações no passado em que houve uma análise mais exigente desses requisitos, e isso acabou gerando um problema no que tange a concessão de uma medida provisória, em que a pessoa acabou perdendo a possibilidade de um determinado direito. Como nós temos um quadro grande de vulnerabilidade na sociedade brasileira, de pessoas que não têm uma orientação jurídica adequada, isso pode acabar criando embaraço”, afirma.

Lindoso pondera que a solução para esta discussão deve vir de fora dos tribunais. “Resolver esse problema como um todo é atribuição do Poder Legislativo e do governo federal. Isso porque o acesso à Justiça precisa ser pensado como política pública, criando-se possibilidades para baratear as custas em certos litígios, fortalecer a Defensoria Pública, melhor distribuir os ônus sucumbenciais e prestigiar o acesso de grupos mais vulneráveis. E isso vai muito além de criar definições objetivas de quais documentos comprovam a hipossuficiência.”