A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez, inscreveu a defesa do consumidor entre os direitos fundamentais
08 de Janeiro de 2024
A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez, inscreveu a defesa do consumidor entre os direitos fundamentais. Até então, o Brasil não contava com uma proteção jurídica sistematizada para o consumidor em razão de sua condição de sujeito vulnerável do mercado.
Ao colocar “a defesa do consumidor” como obrigação do Estado, prevista no rol de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, XXXII), o texto constitucional a tornou cláusula pétrea, ou seja, não pode ser eliminada nem alterada por emenda. Mais adiante, o texto afirma que a ordem econômica, entre outros princípios, deve observar a defesa do consumidor. Por fim, nas Disposições Constitucionais Transitórias, ficou estabelecido que o Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação da Constituição, teria de elaborar o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Embora fora do prazo, a Lei 8.078 foi promulgada em 11 de setembro de 1990, entrando em vigor seis meses depois. O CDC colocou o Brasil numa posição de vanguarda na defesa dos direitos do consumidor e se tornou um importante marco do fortalecimento da cidadania.
Em seu artigo 6°, o código passou a assegurar a proteção da vida e da segurança contra os riscos de produtos e serviços, com efetiva prevenção e reparação, inclusive invertendo-se o ônus da prova pelo juiz; a informação adequada; a proibição da publicidade enganosa e abusiva; a modificação das cláusulas contratuais abusivas, ou sua revisão quando fatos supervenientes as tornarem excessivamente onerosas; o acesso à Justiça; a participação na formulação de políticas de consumo e a educação para o consumo, além da exigência de adequação e eficiência nos serviços públicos.
A proteção do consumidor é uma das múltiplas faces do exercício da cidadania
Esta quarta matéria da série especial Faces da Cidadania mostra como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao interpretar e aplicar as normas consumeristas, vem atuando para garantir o pleno exercício dos direitos do cidadão também nesse campo. Mostra ainda, pelo exemplo de uma iniciativa do Procon do Distrito Federal, como é possível empoderar o consumidor por meio da informação sobre tais direitos.
Nas mais de três décadas que se seguiram à promulgação da Constituição e do CDC, o STJ produziu ampla jurisprudência sobre a matéria, com mais de 20 súmulas relacionadas ao direito do consumidor, dentre as quais se destacam:
Para a ministra Nancy Andrighi, o consumo cada vez maior de bens, serviços e informações passou a ser um critério de aferição da cidadania. A condição de consumidor, disse, é um importante papel que assumem os cidadãos na sociedade contemporânea, “sendo fácil perceber que o direito do consumidor está intimamente relacionado à tutela da cidadania”.
Complemento ao microssistema de processos coletivos
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e membro da comissão que elaborou o anteprojeto do CDC, o professor e advogado Kazuo Watanabe destacou que o código é reconhecido por seu conteúdo principiológico, isto é, “como estatuto que contém princípios tutelares abrangentes, e não normas específicas voltadas a fatos típicos”.
Na sua avaliação, a lei vem cumprindo adequadamente a função de proteger os consumidores, ainda que, em razão do tempo decorrido, tenha precisado de atualizações – como as que disciplinaram o comércio eletrônico e trataram do superendividamento (Lei 14.181/2021).
O professor também ressaltou que o CDC complementou o sistema brasileiro de processos coletivos – o qual, até então, contava apenas com a ação popular e a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), que tutela interesses difusos. “O Código de Defesa do Consumidor, além de dispor sobre os aspectos faltantes na lei de 1985, como a disciplina da competência, da coisa julgada, das espécies de provimentos, criou e disciplinou mais duas espécies de ação coletiva: a que tutela os interesses coletivos stricto sensu e a que tutela os interesses individuais homogêneos”, explicou.
Cidadania instrumental do consumidor
Para Dennis Verbicaro, procurador do Estado do Pará, doutor e professor de direito do consumidor, a identidade coletiva como consumidor permite a ocupação de mais espaços políticos de deliberação, o que influi diretamente no aprimoramento dos deveres éticos do fornecedor. “É o que chamo de cidadania instrumental do consumidor, ou seja, a cidadania emerge da identidade política comum de todos nós, que nos impõe o dever de participar desse diálogo com os agentes econômicos do mercado, sob a mediação do Estado e em prol da harmonia das relações de consumo”, declarou.
Segundo o procurador, essa nova perspectiva de grupo ou de coletividade de consumidores tem uma capacidade muito maior de transformar a realidade: “Essa rede solidária de influência e articulação política impõe aos empresários a mudança de comportamento, seja voluntariamente – sob a forma de marketing de aproximação –, seja coercitivamente – pela sujeição jurídica às normas administrativas, civis e penais de proteção ao consumidor, cuja exigibilidade é garantida pela atenta e oportuna atuação cívica da sociedade e pela fiscalização diligente do Estado”.
Quem pode ser considerado consumidor
Estendendo a ideia de consumidor para muito além do adquirente de bens ou serviços, o artigo 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação (bystander): também goza da proteção da lei aquele que, mesmo sem participar diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do acidente de consumo, decorrente de defeito exterior que ultrapassa o objeto do produto ou do serviço e põe em risco sua segurança física ou psíquica.
“Na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade empresarial destinada à fabricação de produtos ou à prestação de serviços, é possível, em virtude da caracterização do acidente de consumo, o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação, o que atrai a incidência das disposições do CDC”, disse a ministra Nancy Andrighi.
A ministra relatou o REsp 2.018.386, no qual a Segunda Seção estabeleceu que as vítimas de supostos danos decorrentes da exploração de uma usina hidrelétrica podem ser consideradas consumidoras por equiparação. Elas alegaram que a produção de energia elétrica no complexo de Pedra do Cavalo (BA) causou danos materiais e morais em razão do impacto na sua atividade pesqueira e de mariscagem.
O colegiado, no julgamento do CC 143.204, em hipótese envolvendo derramamento de óleo, também considerou que os pescadores artesanais prejudicados eram vítimas de acidente de consumo, motivo pelo qual estaria caracterizada a figura do consumidor por equiparação e justificada a incidência do CDC.
Limites da publicidade no CDC
Uma das decisões mais impactantes do STJ na interpretação do CDC foi o primeiro precedente em que se considerou abusiva a publicidade de alimentos dirigida direta ou indiretamente ao público infantil. O julgamento ocorreu em 2016 na Segunda Turma (REsp 1.558.086).
Para o relator do recurso, ministro Humberto Martins, a decisão sobre compra e consumo de gêneros alimentícios, sobretudo em época de crise de obesidade, deve caber aos pais, não às crianças. “Daí a ilegalidade, por abusivas, de campanhas publicitárias de fundo comercial que utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil (artigo 37, parágrafo 2º, do CDC)”, afirmou à época.
Da mesma forma, o tribunal tem vários outros entendimentos sobre os limites da publicidade diante dos direitos do consumidor – entre eles, o que considerou enganosa, capaz de induzir em erro o consumidor, a mensagem que consta em letras minúsculas nas informações contratuais (REsp 1.599.423).
Responsabilidade solidária da cadeia de produção
O CDC também ampliou o campo de incidência da responsabilidade, que passou a alcançar não apenas o fornecedor diretamente ligado ao evento danoso, mas toda a cadeia produtiva envolvida na atividade de risco.
A Quarta Turma, no REsp 1.358.513, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, decidiu que uma empresa engarrafadora de gás de cozinha e uma distribuidora – revendedora exclusiva da primeira – eram responsáveis solidárias por atropelamento ocorrido durante a entrega do produto, que culminou na morte de um menino de quatro anos, em 2008. A criança andava de bicicleta quando foi atingida pelo caminhão de entrega, no momento em que o motorista realizava manobra em marcha à ré.
Conforme o relator, o CDC estabelece expressamente, no artigo 34, que o fornecedor de produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos. “Ou seja, estabelece a existência de responsabilidade solidária de quaisquer dos integrantes da cadeia de fornecimento, que venham a dela se beneficiar, pelo descumprimento dos deveres de boa-fé, transparência, informação e confiança, independentemente, inclusive, de vínculo trabalhista ou de subordinação”, afirmou Salomão.
O superendividamento na mira das instituições
De acordo com o ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido em abril de 2023), o superendividamento se tornou uma grande preocupação do direito do consumidor em todo o mundo, devido às facilidades de acesso ao crédito.
Ele foi o relator do REsp 1.584.501, no qual a Terceira Turma analisou se o desconto de empréstimo consignado poderia alcançar quase o valor total do salário do devedor. Por reconhecer que tal situação trazia risco à subsistência do consumidor, o colegiado limitou a 30% os descontos na conta em que ele recebia seus rendimentos.
A decisão da Terceira Turma foi tomada quando ainda tramitava no Congresso o projeto que viria a se transformar na Lei 14.181/2021, a chamada Lei do Superendividamento, que disciplina o crédito ao consumidor. Mesmo reconhecendo que as relações contratuais são regidas pelo princípio da autonomia privada, Sanseverino ponderou que esse princípio se submete a outros, como o da dignidade da pessoa humana.
O problema do superendividamento do consumidor tem recebido atenção especial do Poder Judiciário. Em agosto de 2022, foi lançada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento do Consumidor, elaborada por um grupo de especialistas que teve o ministro do STJ Marco Buzzi como coordenador.
Em novembro do mesmo ano, o STJ promoveu o seminário O Tratamento do Consumidor Superendividado à Luz da Lei 14.181/2021: da trajetória legislativa à sua efetivação. Na opinião do ministro Buzzi, coordenador-geral do evento, o controle do superendividamento exige não apenas a atuação do Judiciário, mas um conjunto de ações a serem desempenhadas por vários segmentos sociais e instituições em favor de uma necessária mudança de mentalidade.
Relação entre o direito do consumidor e a proteção de crédito
A relação entre direito do consumidor e proteção de crédito é uma questão frequente nos processos que chegam ao STJ. Em 2009, ao julgar os Temas 40 e 41 dos recursos repetitivos (REsp 1.062.336), a Segunda Seção discutiu a possibilidade de indenização por danos morais diante da falta da comunicação prévia ao consumidor sobre a inscrição de seu nome em cadastros restritivos de crédito – exigência do parágrafo 2º do artigo 43 do CDC –, nos casos em que exista inscrição anterior feita regularmente. O julgamento levou à edição da Súmula 385.
A corte entendeu que o dano moral é configurado quando a entidade de proteção ao crédito aponta como inadimplente alguém que efetivamente não o é. Quando a anotação é irregular, mas o consumidor tem contra si alguma inscrição legítima, não se verifica o direito à indenização, mas apenas ao cancelamento.
Recentemente, no julgamento do REsp 2.056.285, a Terceira Turma estabeleceu que a notificação do consumidor sobre a inscrição de seu nome em cadastro restritivo de crédito exige o envio de correspondência ao seu endereço, sendo vedada a notificação exclusiva por e-mail ou mensagem de texto de celular (SMS).
Escola do consumidor fornece cursos para a população e para fornecedores
Em funcionamento desde 2019, a Escola do Consumidor integra o Instituto de Defesa do Consumidor do Distrito Federal (Procon-DF) e ministra, gratuitamente, cursos a respeito dos direitos dos consumidores – voltados tanto para a população em geral quanto para os fornecedores.
Inicialmente, as aulas eram ofertadas apenas de maneira presencial, mas desde 2020, na pandemia da Covid-19, a instituição passou a publicar vídeos de orientação em seu canal no YouTube, bem como a oferecer cursos on-line. Os temas variam de acordo com as demandas que chegam à instituição e abordam questões como “Educação financeira”, “Formação prática ao micro e pequeno empresário” e “Introdução ao direito do consumidor”. No YouTube, o vídeo mais visualizado fala de “Parcelamento automático da fatura do cartão de crédito”.
O objetivo da escola, segundo o diretor do Procon-DF, Marcelo de Souza do Nascimento, é utilizar uma linguagem clara, de fácil acesso, para empoderar o consumidor por meio da informação. “O consumidor bem informado poderá exercer o seu direito diretamente com o fornecedor”, afirmou.
Nascimento comentou que a questão do consumidor é transversal a diversas outras, de modo que os direitos e deveres relacionados diretamente ao consumo, muitas vezes, precisam ser abordados em conjunto com discussões mais amplas sobre cidadania, que envolvem, por exemplo, a importância do saneamento básico, os direitos das pessoas com deficiência e até mesmo a discriminação racial.
Ao todo, 2.100 alunos já participaram de alguma formação oferecida pelo Procon-DF. Atualmente, a escola também organiza cursos voltados a segmentos específicos, como o setor varejista, e possui um acordo de cooperação técnica com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) para auxiliar os consumidores superendividados.
Fonte: STJ