Apreensão de passaporte e da CNH por dívida pode resultar em arbitrariedades

14 de fevereiro de 2023

O Supremo Tribunal Federal decidiu na última quinta-feira (9/2) que são constitucionais as chamadas “medidas atípicas” do Código de Processo Civil. As previsões, que estão no artigo 139, inciso IV, do diploma legal, autorizam a apreensão de passaporte e Carteira Nacional de Habilitação, assim como a proibição de participar de concursos públicos e licitações, para garantir o pagamento de dívidas. 

Rosinei Coutinho/SCO/STF

A tese, no entanto, traz ressalvas. Diz que as medidas atípicas são constitucionais, mas devem respeitar os artigos 1º, 8º e 805 do CPC, além dos “direitos fundamentais da pessoa humana”. 

O artigo 1º do CPC diz que o processo civil deve ser ordenado, disciplinado e interpretado conforme valores e normas fundamentais da Constituição. Segundo o artigo 8º, os magistrados, ao aplicar o ordenamento jurídico, devem atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade humana e observando os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência. O artigo 805, por sua vez, determina que execuções de dívidas devem ser feitas do modo menos gravoso ao executado. 

Especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico divergiram sobre a decisão do Supremo. Para alguns, o entendimento da corte pode levar à supressão de direitos fundamentais. Para outros, as ressalvas previstas na tese garantem que as execuções respeitarão os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 

Lenio Streck, constitucionalista e colunista da ConJur, integra a primeira corrente. Para ele, há supressão de direitos fundamentais. Ele também afirma que a decisão do Supremo só poderia ser “festejada” em um “mundo ideal”. 

“As arbitrariedades serão inevitáveis. A decisão (tese) diz o óbvio: desde que não se viole direitos fundamentais. Ora, nenhuma medida pode ferir direitos fundamentais. Dizer também que cabe recurso é não levar em conta o que se faz no cotidiano. Cabe recurso? Que bom. Recorra, então. Aí começa o calvário”, diz ele. 

Para Gabriela Shizue S. Araujo, advogada, doutora e professora de Direito Constitucional na PUC-SP, o Poder Judiciário não deveria chancelar a colisão entre direitos fundamentais e direitos de crédito ou patrimoniais. 

“Somente quando há colisão entre direitos fundamentais é que se admite que um ceda provisoriamente sua força em prol de outro considerado mais relevante naquele momento da aplicação concreta. Não é o caso de um direito de crédito ou patrimonial se contrapondo a direitos fundamentais expressamente protegidos pelo texto constitucional. Direitos individuais como o direito à locomoção, o direito de ir e vir, e até mesmo o direito ao trabalho, podem ser afetados a depender da aplicação que será dada à decisão do STF.” 

Muita calma nessa hora
A constitucionalista Vera Chemim diverge. Para ela, não é possível afirmar categoricamente que a decisão do Supremo suprime direitos fundamentais, uma vez que a tese fixada pela corte diz que devem ser respeitados os artigos 1º, 8º e 805 do CPC. 

“Conforme muito bem explicado no voto do ministro relator, Luiz Fux, não existe bom senso em apreender a carteira de habilitação de um taxista (que aufere a sua renda com o seu meio de transporte) em razão de uma dívida. Da mesma forma, a apreensão de passaporte do devedor que ostenta uma vida de luxo constitui medida razoável para a exigência de quitação de sua dívida, quando já foram esgotados todos os demais fundamentos”, afirma ela. 

Ainda segundo Chemim, se um magistrado decidir de modo abusivo, o prejudicado pode entrar com recurso afirmando que as condições previstas na tese fixada pelo Supremo não foram respeitadas. 

“Portanto, não há de se argumentar que aquela decisão irá restringir ou suprimir um direito fundamental, até porque aqueles direitos não são absolutos e podem sofrer algum tipo de limitação, desde que a decisão judicial seja devidamente motivada e respeite os princípios constitucionais envolvidos em cada casa concreto.” 

Guilherme Pupe, doutor em Processo Civil, professor do IDP e desembargador substituto do TRE-DF, diz que as medidas atípicas são inconstitucionais, mas pondera que o Supremo acertou ao estabelecer condicionantes, ainda que genéricas. 

“A despeito da minha posição pessoal, pela inconstitucionalidade das medidas atípicas especificamente atacadas pela ADI, entendo como positivo que a decisão do STF tenha, ao menos, estabelecido condições, ainda que genéricas, que deverão ser observadas pelos juízes e tribunais”, afirma Pupe.

Ainda de acordo com ele, as condições devem ser mais bem detalhadas pelo Superior Tribunal de Justiça quando a corte analisar o Tema 1.137, que trata do mesmo assunto julgado pelo STF. A partir daí, diz Pupe, haverá parâmetros mais bem estabelecidos sobre o controle judicial das medidas atípicas. 

“É comum que se critique no Brasil a inefetividade do processo judicial. Mas não vejo como menos efetivas decisões que resguardem os direitos fundamentais contra medidas eventualmente desproporcionais de cunho eminentemente patrimonial”, afirma o professor. 

ADI 5.941

Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2023, 20h44