Casos de indisciplina, violência e ofensas morais, em campo ou nas arquibancadas, frequentemente acabam se transformando em processos judiciais – mas não necessariamente no Poder Judiciário, pois o esporte, no Brasil, tem sua Justiça própria.
28/11/2022
As comissões disciplinares, os Tribunais de Justiça Desportiva e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) formam uma estrutura de direito privado – são órgãos arbitrais –, porém de interesse público, previstos na Constituição Federal. E é o texto constitucional que determina: o Poder Judiciário só deve atuar depois que estiverem esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva.
Apesar dessa reserva, a Justiça estatal recebe e julga um número expressivo de demandas relacionadas às atividades desportivas, muitas tratando do futebol. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reúne julgados sobre grande variedade de conflitos em torno do mais popular dos esportes.
Agressão de jogador contra árbitro é ato ilícito indenizável na Justiça comum
Por maioria, a Terceira Turma do STJ decidiu que agressões físicas e verbais praticadas por jogador profissional contra árbitro, durante a partida, constituem ato ilícito indenizável na Justiça comum, independentemente de eventual punição aplicada pela Justiça Desportiva.
No caso julgado pelo colegiado, por discordar de uma decisão em campo, um jogador agrediu o juiz pelas costas, além de ofendê-lo. Em primeira instância, o agressor foi condenado a pagar indenização de R$ 25 mil por danos morais, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), invocando o parágrafo 1º do artigo 217 da Constituição, considerou que a punição disciplinar da Justiça Desportiva seria suficiente.
O relator do REsp 1.762.786, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, observou que a conduta do jogador não configurou transgressão de cunho estritamente esportivo e, por isso, pode ser submetida ao crivo do Poder Judiciário estatal e julgada à luz do Código Civil.
O magistrado ressaltou que o jogador, além de transgredir as regras do futebol, ofendeu a honra e a imagem do árbitro. Desse modo, segundo Cueva, surge o dever de indenizar a vítima que, no exercício regular de suas funções, sofreu injusta e desarrazoada agressão.
“No tocante à responsabilidade civil aplicada aos esportistas durante a prática de sua atividade, a doutrina preconiza que, mesmo naquelas modalidades em que o contato físico é considerado normal, como no futebol, ainda assim os atletas devem sempre zelar pela integridade física do seu adversário. Eventual ato exacerbado, com excesso de violência, que possa ocasionar prejuízo aos demais participantes da competição, pode gerar a obrigação de reparação”, afirmou o relator.
Uso publicitário de imagem de torcedor em estádio não gera dano moral
Em 2020, a Terceira Turma entendeu que não configura dano moral o uso, em campanha publicitária, da imagem de um torcedor de futebol no estádio, captada sem maior destaque individual no conjunto da torcida.
A relatora do REsp 1.772.593, ministra Nancy Andrighi, destacou que se a imagem é – segundo a doutrina – a emanação de uma pessoa, por meio da qual ela se projeta, se identifica e se individualiza no meio social, não se pode falar em ofensa a esse bem personalíssimo quando não configuradas a projeção, a identificação e a individualização da pessoa representada.
Embora não seja possível presumir que “o torcedor presente no estádio para assistir à partida de futebol, tenha, tacitamente, autorizado a recorrida a usar sua imagem em campanha publicitária de automóvel, não há falar em dano moral, porque o cenário delineado nos autos revela que as filmagens não destacam a sua imagem, senão inserida no contexto de uma torcida, juntamente com vários outros torcedores”, concluiu a magistrada.
Time mandante que não oferece segurança deve responder pelos danos causados
Ao julgar o REsp 1.924.527 e o REsp 1.773.885, a Terceira Turma entendeu que o local do evento esportivo não se restringe ao estádio ou ao ginásio, mas abrange também o seu entorno; por isso, o time mandante que não oferecer segurança necessária para evitar tumultos na saída do estádio deverá responder pelos danos causados, solidariamente com a entidade organizadora da competição.
Em ambos os processos, torcedores alegaram que sofreram agressões ou tiveram seu patrimônio depredado pela torcida adversária nas proximidades dos estádios.
Os relatores dos recursos, ministra Nancy Andrighi e ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, apontaram que o artigo 13 do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003) garante aos torcedores o direito à segurança antes, durante e após os eventos esportivos.
A magistrada apontou que, conforme os artigos 14 e 19 do estatuto, o clube mandante deve organizar a logística no entorno do estádio de modo a proporcionar a entrada e a saída de torcedores com celeridade e segurança.
Nessa mesma linha, Cueva ressaltou que o clube detentor do mando de jogo tem responsabilidade objetiva – e solidária com a entidade que organiza a competição – diante dos prejuízos causados aos torcedores por falhas de segurança.
Segundo o magistrado, em relação à responsabilidade, o Estatuto do Torcedor prevê a aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor (CDC), cujos artigos 12 a 14 tratam do vício grave que gera acidente de consumo, sendo a federação e o clube mandante equiparados, para esse efeito, à condição de fornecedores de serviço.
“O fato de a primeira bomba ter sido arremessada da parte externa do estádio não interfere no dever de indenizar”, observou o ministro. Para ele, “a fiscalização das redondezas também foi defeituosa, visto que havia torcedores munidos de artefatos explosivos”.
Pedidos de cunho desportivo direcionados à CBF devem ser julgados no local de sua sede
A Segunda Seção, ao julgar o CC 165.987, decidiu que, quando o processo versa também sobre pedidos de cunho desportivo direcionados à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o seu caráter eminentemente consumerista é afastado, definindo-se a competência no foro onde se localiza a sede da entidade futebolística.
De acordo com os autos, um grupo de torcedores pediu indenização por danos morais e materiais sofridos durante uma partida de futebol, além da destituição de dois dirigentes de um clube e do cancelamento do jogo, com a consequente alteração da tabela do Campeonato Brasileiro da Série A de 2014.
O relator no STJ, ministro Marco Buzzi, com base no posicionamento firmado sob o Tema 794, quando do julgamento do CC 133.244, lembrou que o juízo do local em que está situada a sede da entidade organizadora do campeonato é competente para todas as ações que questionem a validade e a execução de decisões da Justiça Desportiva.
O magistrado destacou que, segundo esse mesmo julgado, a entidade esportiva de caráter nacional, responsável pela organização (no caso, a CBF), deve, necessariamente, integrar o polo passivo das demandas, sob pena de ela não vir a ser atingida pelos efeitos subjetivos da coisa julgada, e de tornar o julgado desprovido de efetividade.
Tendo em vista que a demanda pretendia a nulidade da partida, com a execução de novo jogo, ou, subsidiariamente, que o placar fosse considerado 3×0 para o time visitante, Buzzi concluiu que ela não se relacionava exclusivamente ao direito do consumidor e, assim, decidiu pela competência do foro do Rio de Janeiro, que é onde fica a sede da CBF
Caso da Máfia do Apito não configurou dano moral coletivo
No escândalo conhecido como Máfia do Apito, a Terceira Turma decidiu não ter sido configurado dano moral coletivo (REsp 1.664.186). Segundo o colegiado, para manter a condenação ao pagamento de danos morais coletivos, seria necessário demonstrar, minimamente, o sentimento de angústia e intranquilidade de toda uma coletividade de torcedores, com a afetação do círculo primordial de seus valores sociais.
No caso em discussão, dois juízes e um empresário foram condenados por manipularem, em 2005, o resultado de diversos jogos do Campeonato Brasileiro e do Campeonato Paulista, com o objetivo de favorecer grandes apostadores.
O relator do recurso, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ressaltou que, segundo a jurisprudência do STJ, para haver a condenação à reparação por dano moral coletivo, é essencial que o ato antijurídico praticado atinja alto grau de reprovabilidade e transborde os limites do individualismo, afetando, por sua gravidade e sua repercussão, o círculo primordial de valores sociais, não bastando a mera infringência à lei ou ao contrato para a sua caracterização.
“Na específica hipótese dos autos, não se antevê tamanha lesão à esfera extrapatrimonial dos torcedores, de maneira totalmente injusta e intolerável, com inadmissível agressão ao ordenamento jurídico e aos valores éticos fundamentais dessa coletividade. A conduta atribuída aos demandados é muito mais prejudicial às agremiações esportivas, que obtiveram resultados associados não ao maior ou menor esforço de sua equipe, mas à conduta fraudulenta daqueles que deveriam assegurar plena observância às regras do jogo”, disse o magistrado.
Nas transações envolvendo futebolistas, clubes devem contribuir para a FAAP
Em junho deste ano, a Segunda Turma, no julgamento do AREsp 1.970.374, decidiu que, nas transações envolvendo jogadores de futebol, os clubes devem contribuir não só para a Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf), mas também para a Federação das Associações de Atletas Profissionais (FAAP).
No recurso, um clube sustentava que a contribuição à FAAP – prevista no revogado artigo 57, inciso I, alínea “b”, da Lei 9.615/1998 (Cide – Lei Pelé) – só se aplicaria às entidades de outras modalidades que não o futebol, já que, para as do futebol, há a contribuição específica do artigo 57, inciso II, da mesma lei (Fenapaf).
Em seu voto, o relator do recurso, ministro Mauro Campbell Marques, afirmou que o argumento da recorrente estava em flagrante contrariedade com o princípio da capacidade contributiva, disposto no artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal.
Para o magistrado, considerar que os clubes de futebol só estariam sujeitos à contribuição para a Fenapaf seria assumir uma tributação regressiva no setor, submetendo aqueles com maior capacidade econômica a uma alíquota menor de 0,2% sobre o valor correspondente às transferências (destinado à Fenapaf), enquanto as entidades com menor capacidade econômica ficariam submetidas a uma alíquota maior que 0,8% do valor correspondente às transferências (destinado à FAAP).
“Esse tipo de interpretação isolaria o futebol das demais modalidades desportivas, impedindo que a modalidade mais rica do país contribuísse para o bem-estar de todos os atletas profissionais, os ex-atletas e os atletas em formação, de todas as modalidades, em contrariedade também ao princípio constitucional da solidariedade social e aos objetivos da Cide de criar um ambiente econômico melhor na área desportiva em geral” declarou o relator.
Contrato de exploração de atleta entre clube e empresa decorre de relação comercial
O contrato de exploração comercial de atleta ou de técnico de futebol, firmado entre clube desportivo e sociedade empresarial, decorre de relação comercial, e, por isso, eventual ação para discutir ajuste no contrato deve ser encaminhada à Justiça estadual.
Foi o que entendeu a Terceira Turma ao julgar REsp 1.953.586, interposto por um clube de futebol que embargou a execução de título executivo extrajudicial, sob o fundamento de que a execução seria decorrente de relação trabalhista, pois se refere à exploração comercial de jogador de futebol, devendo, portanto, ocorrer a declinação da competência para a Justiça do Trabalho.
A ministra Nancy Andrighi, relatora, destacou que os contratos que deram origem ao ajuizamento da ação de execução de título executivo extrajudicial foram firmados entre duas pessoas jurídicas, sendo a recorrida detentora dos direitos econômicos e de imagem, voz e apelido do atleta profissional.
“Não há dúvidas de que a execução iniciada pela recorrida advém de uma relação de natureza civil, o que não se confunde com as hipóteses de contratos coligados de trabalho e de imagem celebrados pelo próprio atleta”, apontou a relatora.
Em outro julgamento (CC 155.045), a Segunda Seção, sob relatoria do então desembargador convocado Lázaro Guimarães, fixou o entendimento de que também deve ser julgada pela Justiça comum a ação que busca rescindir o contrato comercial firmado entre clube de futebol e empresa de marketing que adquiriu os direitos de imagem de um ex-técnico de futebol.
O magistrado explicou que o exame dos elementos da ação afasta a competência da Justiça do Trabalho, pois, mesmo que a causa de pedir faça referência ao desempenho do técnico como motivação para a rescisão do contrato de marketing, firmado exclusivamente entre o clube e as empresas especializadas, a pretensão deduzida não é dirigida contra o ex-treinador, tampouco as cláusulas contratuais preveem a sujeição da relação comercial à conservação da relação de trabalho ou a seus termos.
“Pensar o contrário seria transferir para a Justiça laboral a competência para decidir acerca da rescisão de contrato comercial, com a dispensa das penas contratuais, ainda que usado como justificativa o alegado baixo desempenho do empregado na vigência do contrato laboral, mera causa de pedir próxima”, concluiu o ministro.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1772593REsp 1773885REsp 1762786REsp 1924527REsp 1664186REsp 1953586CC 155045AREsp 1970374CC 165987
Fonte: STJ