Desde julho de 2021, quando entrou em vigor a Lei de Superendividamento (conjunto de alterações do Código de Defesa do Consumidor), que tentava desafogar consumidores em meio às crises sanitária e econômica desencadeadas pela Covid-19, as ações contra bancos dispararam. Naquele ano, conforme dados do DataJud, entraram nos tribunais 411 mil novos casos sobre consignado e 666 mil de inclusão indevida em cadastro de inadimplentes, assunto que também tem relação com empréstimos.
27 de janeiro de 2025
Lei de Superendividamento ainda não teve eficácia para combater crédito predatório; tribunais bateram recorde de novos processos
Três anos depois, os processos que buscam tirar o nome de cadastro de devedores saltaram para 1,1 milhão (crescimento de 80%), e as ações sobre consignado ultrapassaram 647 mil (57% maior do que em 2021). Quando comparado ao ano passado, o crescimento é exponencial: as ações novas sobre consignado subiram 340% e as sobre inclusão de nome em cadastro aumentaram 322%.
O assunto de inclusão indevida em cadastro de devedores só perdeu para a indenização por dano material em 2024 (que registrou 1,2 milhão de casos novos), levando em conta todos os assuntos que correm na Justiça. Os números registrados são os maiores desde o início do DataJud em 2020.
O crescimento desproporcional mostra que o propósito da lei não vem sendo cumprido. A norma estabeleceu regras para os bancos oferecerem “crédito responsável”, como, por exemplo, não ofertar empréstimo a quem eles sabem que não poderá pagar, fornecer todas as informações ao consumidor sobre o produto e dar, no mínimo, dois dias de validade às ofertas para que as pessoas não se sintam pressionadas a adquirir o crédito.
Uma das respostas para a quantidade de ações que tramita na Justiça é que essas regras não têm sido cumpridas. Na prática, o chamado crédito irresponsável ou predatório e o desconhecimento sobre a lei têm minado sua eficácia, dizem especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Sob a perspectiva administrativa, os números caminham da mesma forma. Dados do Procon-SP obtidos pela reportagem mostram que as reclamações sobre crédito consignado saltaram de 10,3 mil em 2022 para mais de 22 mil em 2024.
Golpes e fraudes lideram, enquanto juros abusivos, cobrança indevida e falta de informações (ponto atacado pela Lei de Superendividamento, mas que não está sendo cumprido pelos bancos) completam a lista dos principais motivos de reclamações.
“Temos um núcleo de superendividados desde 2012, antes mesmo da lei. E verificamos que o número tem aumentado de forma elevada nos últimos três anos. Em 2022, por volta de 5 mil consumidores entraram em contato com o núcleo para ter auxílio; em 2024 saltou para 7 mil; no ano passado, mais de 10 mil pessoas procuraram ajuda do Procon por conta de superendividamento”, afirma Luiz Orsatti Filho, diretor-executivo do Procon-SP.
Em meio ao crescimento de ações, o Tribunal de Justiça de São Paulo criou, em parceria com fundação, o Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania em Matéria Consumerista (Cejuscom). A ideia é fomentar a mediação, especialmente de casos de superendividados, e, ao mesmo tempo, educar consumidores, comerciantes e microempresários sobre os cuidados ao se contratar crédito. Desde outubro do ano passado, quando o centro foi criado, foram 708 atendimentos.
Conheceis a verdade…
Se, por um lado, os dados compilados pelo Conselho Nacional de Justiça mostram a disparada de ações contra bancos, em especial sobre crédito, por outro a nova lei permite um monitoramento desses processos e orienta os consumidores sobre um direito pouco conhecido, afirma a juíza Karen Danilevicz Bertoncello, do Projeto de Gestão de Superendividamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
“Atribuo este crescimento (de ações contra bancos) a duas razões: o nome da ação permite maior acompanhamento estatístico, pois antes eram nominadas como revisionais, cláusulas abusivas, bancárias etc. E, com tutela específica, direcionando melhor o ajuizamento, a lei acaba mostrando a existência de um direito até então pouco conhecido.”
Bertoncello, estudiosa do tema, afirma que notou uma maior participação de algumas instituições financeiras em acordos e outras formas de resolução dos processos, mas que “outras mantém a postura resistente e omissa quanto ao respeito à lei, especialmente no que diz com os cuidados que devem adotar na concessão do crédito”.
Na categoria consumerista, inclusão indevida em cadastro de inadimplente e consignado estão entre os 5 assuntos mais demandados
A divisão entre instituições que cumprem e as que deixam de cumprir a lei mostra a densidade do problema. Hoje, uma pessoa pode ter acesso a crédito em dezenas de modalidades, como cartão consignado, crédito pessoal via cartão (com o dinheiro sendo depositado imediatamente) e operações via varejo, em que a empresa oferece empréstimo por meio de uma logística financeira própria.
“Temos um mercado muito agressivo e que lucra com fraudes, com coisas dúbias e com assédio de consumo”, afirma a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Claudia Lima Marques, que foi relatora-geral da comissão de juristas do Senado, que ajudou a elaborar a Lei de Superendividamento.
Ela cita que há certo desconhecimento da lei por parte do Judiciário, principalmente sobre as sanções que podem ser aplicadas às instituições financeiras que não seguem a regra. Pelo artigo 54-D, parágrafo único, o descumprimento das regras pode gerar redução dos juros, dos encargos e de qualquer acréscimo à dívida.
“Ao ser sancionado, o grande banco vai começar a cumprir a lei, pelo menos os bancos sérios. Por outro lado, as financeiras (empresas especializadas em conceder crédito) são mais agressivas. Hoje temos mais de 50 instituições que oferecem empréstimo consignado”, diz Lima Marques.
Mediar é preciso
A alta demanda processual relacionada a crédito contrasta com os esforços do Judiciário para reduzir os acervos dos gabinetes. Ainda que advogados e magistrados entrevistados pela reportagem tenham notado uma maior pré-disposição das instituições bancárias de fazer acordos ou de sanar a questão antes da sentença, em geral os bancos não costumam embarcar na conciliação.
Dois fatores fazem com que as instituições bancárias se afastem dos acordos, a litigância predatória e o custo-benefício dos processos, diz o advogado Márcio dos Santos Vieira, especializado em questões envolvendo bancos.
Bancos não priorizam acordos e mediação, e o Judiciário acaba abarrotado
“O banco não tem certeza se todas essas ações são legítimas ou não. Eles poderiam investir em verificar, mas, por falta de estrutura, uma questão de custo-benefício, eles preferem deixar o processo andar um pouco mais e oferecem, geralmente, acordo depois da sentença de primeiro grau”, diz.
Sobre o custo-benefício, diz o advogado, o investimento do banco com estrutura e com profissionais para analisar cada demanda e oferecer acordo seria mais custoso do que o atual modelo adotado, em que a mediação fica para um segundo momento, por vezes até depois do acórdão em segunda instância. “Os bancos transferem para o Judiciário o trabalho que eles deveriam fazer.”
O procurador do Estado do Espírito Santo, Leonardo Garcia, cita outro gargalo: a negligência do Banco Central de fiscalizar a atuação dessas instituições, em especial a dos correspondentes bancários, que concentram a maior parte dos abusos.
“Os bancos não têm prática usual de fazer acordos. Essas renegociações que vemos nestes feirões, mutirões etc., na verdade já pegam o consumidor estrangulado. O BC é, muitas vezes, negligente, e isso acaba caindo no Judiciário. Os valores indenizatórios não incentivam acordos e as práticas permanecem.”
Além do BC, os Procons também têm prerrogativas para sancionar as instituições em casos de abusos. Culturalmente, no entanto, as empresas, incluindo os bancos, contestam as multas no Judiciário, gerando mais judicialização. “O modelo escolhido no Brasil foi o modelo judicial”, diz. Segundo Garcia, o envio de um cartão de crédito à residência do consumidor sem seu consentimento, por exemplo, deveria gerar uma “sanção pesada do BC”.
A juíza Monica Di Stasi, da 3ª Vara Cível de São Paulo, afirma que, para que haja mais mediações, é necessária uma mudança cultural. “Foram séculos litigando em processo adversativo”, diz. Ela cita que a lei fez com que alguns bancos mudassem seus comportamentos, buscando mais a resolução adequada dos conflitos, mas uma parte ainda mantém uma postura agressiva contra o consumidor.
“A comunidade jurídica vem enfrentando dificuldades para colocar em prática as diretrizes preconizadas pela Lei de Superendividamento, especialmente porque, no âmbito do processo civil tradicional, os modelos com os quais está acostumada a lidar não respondem de maneira eficiente à mudança de paradigma que se pretende incentivar”, afirma a magistrada, que é coordenadora da Cejuscom do TJ-SP.
‘Contrato sentimental’ e arrependimento
Os produtos de crédito, diz a professora Claudia Lima Marques, são específicos porque mexem com os sentimentos das pessoas. A possibilidade de determinado valor cair na conta do consumidor instantaneamente gera sensações de euforia e alívio que fazem com que consignados não tenham a mesma natureza que um celular ou um tênis. Segundo ela, esse empréstimo trata-se de um “contrato sentimental”, com o agravante de ser, na maioria das vezes, firmado por adesão.
A partir deste conceito, estudado por Marques para elaborar a Lei de Superendividamento, foi proposto na norma um direito de arrependimento específico para contratação de créditos consignados, posteriormente vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL). Em tese, o artigo 49, que trata de forma geral sobre desistência, poderia ser aplicado aos empréstimos, mas as instituições bancárias dificultam esse direito.
Por vezes, segundo relatos de magistrados à reportagem, a burocracia para cancelar a contratação faz com que o consumidor desista e assuma a dívida.
Para Lima Marques, a ausência do dispositivo contribuiu para o número de 600 mil novos casos que entraram na Justiça sobre o assunto em 2024. “O direito de arrependimento do crédito digital não existe no Brasil”, diz. “Nunca vi um caso de alguém que tenha se arrependido de um crédito online e tenha conseguido desistir”, afirma a professora, que defende que seja editado novo decreto para acrescentar o artigo à lei.
A juíza Monica Di Stasi também defende um direito de arrependimento específico para esses produtos. A proposta foi desenvolvida em sua tese de doutorado sobre crédito digital e superendividamento. Segundo ela, ao contratar via aplicativo um determinado produto, o consumidor teria de confirmar a aquisição do crédito 24h ou 48h depois, confirmando que realmente quer acesso ao dinheiro.
“A oferta de crédito é perigosa. Às vezes, a pessoa não estava nem pensando naquilo e aparece uma oportunidade, o algoritmo oferece determinado produto sob medida para determinada pessoa. A minha ideia é que a oferta fique em suspenso por um período para que o consumidor pudesse sair do calor da contratação e refletir se ele precisa do crédito e se cabe no seu bolso.”
- Por Alex Tajra – repórter da revista Consultor Jurídico.
- Fonte: Conjur