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A alteração radical da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992) promovida pela Lei 14.230/2021 serviu para vedar os abusos tão comuns no combate a esse tipo de ilícito ou para gerar uma anistia ampla cuja consequência é a impunidade da classe política?

4 de dezembro de 2023

Para ministro Alexandre de Moraes, alguns dispositivos da nova LIA foram incluídos para confundir

Dois anos após a reforma da lei, ainda não há uma resposta clara para a pergunta. As alterações são alvo de disputa no Supremo Tribunal Federal e colocaram em xeque muito do que o Superior Tribunal de Justiça já havia definido sobre o tema.

Não era para ser assim. A reforma partiu do trabalho de uma comissão de juristas comandada pelo ministro Mauro Campbell, do STJ. O anteprojeto oferecido ao Congresso incorporava na legislação os entendimentos sedimentados nas cortes e resolvia outros pontos de conflito.

A oferta foi quase que integralmente ignorada pelo legislador. O projeto de lei da nova LIA tramitou durante a crise sanitária da Covid-19, em meio a impasses na votação e sem o devido debate público. O texto aprovado imediatamente gerou uma corrida ao STF.

A única unanimidade parece ser a do acerto em extirpar o tipo culposo de improbidade, que conferia consequências graves ao administrador incompetente e desqualificado, mas não necessariamente corrupto. Era esse o principal fator que permitia o uso político da lei.

De resto, tudo é alvo de debate. Para o ministro Alexandre de Moraes, do STF, é visível que diversas alterações foram feitas com intenções pouco republicanas. “Vários dispositivos foram colocados não de maneira aleatória, mas para confundir. Infelizmente, para gerar uma impunidade.”

A fala foi feita durante o Congresso Brasileiro de Improbidade Administrativa, organizado pela Enfam na sede do Conselho da Justiça Federal, em 23 e 24 de novembro. Na sequência, o ministro Herman Benjamin, do STJ, somou críticas ao dizer que é difícil saber a origem e o motivo das alterações, graças à tramitação opaca no Congresso.

“Jabuti não sobe em árvore, mas temos vários nessa lei. E juízes não são administradores do zoológico para sair tratando do jabuti abandonado. Eles precisam, além de aplicar a lei, saber como o dispositivo apareceu. Os juízes vão sofrer com os jabutis dessa lei”, afirmou.

Na palestra de encerramento do evento, o ministro Mauro Campbell afirmou que não concorda com muitas das alterações efetivadas. “Mas esse é o sistema político democrático”, disse. Também destacou que o que chegou a ser discutido no Congresso era ainda mais grave.

Citou como exemplo o caso da prescrição intercorrente, que não existia e agora ocorre em quatro anos — a metade da prescrição para aplicação das normas, de oito anos contados a partir da ocorrência do fato, conforme o artigo 23, parágrafo 5º da LIA.

A proposta feita no substitutivo era de que a ação prescrevesse se não se resolvesse em dois anos e meio, quando dados do Conselho Nacional de Justiça indicavam que o tempo médio de trâmite para improbidade administrativa era de mais de 6 anos.

O texto que foi discutido no Congresso sequer previa marcos interruptivos da prescrição. “Indaguei se não era melhor reduzir a um artigo só: fica decretado o anistiaço”, disse Campbell.

Para Herman Benjamin, juizes precisam, além de aplicar a lei, saber como que o dispositivo apareceu

Jurisprudência em xeque
Muitas das alterações colocam em xeque a jurisprudência de 30 anos construída pelo STJ. No evento da Enfam, especialistas destacaram que três temas de recurso repetitivo (Temas 701, 1.055 e 1.089), a princípio, entram em choque com as disposições da nova LIA.

Outros entendimentos sedimentados também podem ser afetados, como o cabimento da compensação por danos morais, a permissão para enquadrar o ato de improbidade administrativa em dispositivo diverso do indicado na inicial e o cabimento de responsabilidade solidária na condenação.

“A Lei diz coisas em sentido diametralmente oposto do que a jurisprudência do STJ dizia. O que eu faço com isso? O código não dá resposta. Difícil falar que, com o advento da lei, cai a jurisprudência. A gente convive com súmulas caquéticas há mais de 50 anos”, disse o advogado Cássio Scarpinella Bueno.

A subprocuradora da República Samantha Chantal criticou o fato de a lei afrouxar sanções, com a inclusão de cláusulas abertas que deixam margem para uma indesejada discricionariedade judicial.

“Vai ser cada vez mais relevante debater o que é proporcionalidade em relação ao cálculo sanção-conduta ímproba e na relação entre defesa e proteção do patrimônio público e do bem jurídico protegido pela lei”, exemplificou.

Para o juiz auxiliar do STJ, Fernando Gajardoni, as críticas são cabíveis e normais. O pente fino entre o que é excessivo ou não vai ser resolvido pela jurisprudência e doutrina. Ele prevê um sistema que conseguirá conciliar de maneira adequada o combate à improbidade e preservação do administrador que comete ilegalidades.

Essa filtragem já começou a ser feita pelo STF. Além de definir tese sobre a retroatividade no Tema 1.199 da repercussão geral, a corte suspendeu o artigo que previam o monopólio do Ministério Público para propor a ação de improbidade , por liminar nas ADIs 7.042 e 7.043.

Na ADI 7.236, o ministro Alexandre de Moraes, relator, suspendeu a eficácia de cinco artigos, entre eles o que limitaria a perda de sanção do cargo público, o que alteraria a contagem do prazo de suspensão dos direitos políticos e o que imporia vinculação com as decisões na instância penal.

“A verdade é uma só: mudança na lei é igual caminhão de melancia. Quando começa a andar, elas caem, mas depois se ajeitam e tudo vai bem. Isso vai acontecer”, brincou Gajardoni.

Atenção, MP
A nova LIA também impõe um rigor maior para a tramitação da ação de improbidade, com hipóteses de nulidade da sentença que, na opinião de especialistas, podem ter ao menos um efeito positivo: a valorização da investigação.

Mauro Campbell presidiu a comissão de jurista que preparou anteprojeto para reforma da lei de improbidade

Segundo o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Ministério Público terá muito a ganhar com a exigência de uma maior ponderação no ajuizamento das ações. Especialmente na questão das cautelares de indisponibilidade de bens.

“Ainda há uma má utilização da instrução, dos institutos de apuração como inquérito civil e processo administrativo disciplinar. Temos que investir na boa instrução. Se você chega à conclusão de que é improbidade, você processa. Se não é improbidade, toma-se outro caminho.”

O desembargador do TRF-6, Edilson Vitorelli, concorda. “Precisamos produzir a maior quantidade e qualidade de provas possíveis para esclarecer os fatos. No Brasil, a gente decide ainda por verdade sabida, pelo bom senso. Temos que produzir mais prova.”

O advogado Guilherme Pupe disse que, quando a lei exige a descriminação da conduta, com indícios mínimos e prejuízo efetivo antes da sentença, isso precisa ser endereçado na petição. “Vislumbro o inquérito como um importante instrumento não prestigiado como deveria.”

E segundo o advogado Fábio Medina Osorio, a nova lei ficou mais exigente do ponto de vista do exercício do poder investigatório e da técnica acusatória. “Isso é bom. É necessário que haja mais tecnologia e treinamento da técnica acusatória.”

O ministro Alexandre de Moraes vê benefícios também para o Judiciário. Explicou que, por uma série de motivos, a ação de improbidade historicamente ficou nas mãos do MP, que se especializou. Os juízes, nas varas da Fazenda, passaram a receber toda e qualquer ação.

“Era muito difícil uma ação de improbidade ser recusada de início. Mesmo que não tivesse nada. A culpa é do Judiciário. O juiz deve de zelar para que alguém não seja processado injustamente por improbidade. Aqui funciona in dubio pro societate. Mas se for in dubio.

“A nova lei melhorou isso. Ela determina que juiz analise justa causa para a ação. A questão aqui é o Poder Judiciário se especializar mais na questão da improbidade para evitar abusos.”, concluiu.

Fonte: Revista Consultor Jurídico