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relatório da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, apresentado na última semana, traz previsões polêmicas sobre dois conceitos de Direito Digital, que caminham juntos e estão relacionados a conteúdos na internet: os direitos ao esquecimento e à desindexação.

8 de março de 2024, 8h52

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Comissão responsável por revisar Código Civil sugeriu artigo sobre direito ao esquecimento na internet

O direito ao esquecimento é a ideia de impedir a divulgação de informações consideradas irrelevantes ou desatualizadas sobre uma pessoa. Quando aplicado à internet, isso significa remover tais conteúdos dos seus sites de origem. Já a desindexação consiste em excluir apenas das plataformas de busca (como o Google) o link que direciona para essas informações.

Especialistas no tema consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico identificaram diversos problemas nas sugestões da comissão para ambos os conceitos. Eles se referem tanto à pertinência de incluir tais dispositivos no Código Civil quanto à redação dos artigos propostos.

No caso do direito ao esquecimento, há um receio de desrespeito à decisão de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal que considerou esse conceito incompatível com a Constituição.

Tal interpretação não é unânime. Ainda assim, mesmo na opinião de quem não vê conflito com o acórdão do STF e aprova a ideia, o texto da comissão possui imprecisões.

Proposta

O artigo sugerido pela comissão para o direito ao esquecimento diz que “a pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes, que representem lesão aos seus direitos fundamentais ou de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado”.

Em seguida, são listados os requisitos para a concessão do pedido: a demonstração de que transcorreu um “lapso temporal razoável” desde a publicação da informação verídica; a falta de interesse público ou histórico da informação; a comprovação de que a manutenção do conteúdo na fonte poderá causar “significativo potencial de dano” à pessoa; “a presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação”; e a concessão de autorização judicial.

Pela proposta, se for provado que “a informação veio ao conhecimento de quem levou seu conteúdo a público por erro, dolo, coação, fraude ou por outra maneira ilícita”, o juiz deve ordenar a exclusão do conteúdo e o site passa a ser responsável por provar eventual necessidade de manutenção.

O texto ainda diz que “consideram-se obtidos ilicitamente” os dados e as informações extraídos de processos judiciais que correm em segredo de Justiça, conseguidos por meio de “hackeamento ilícito”, “fornecidos por comunicação pessoal” ou “a respeito dos quais o divulgador tinha dever legal de mantê-los em sigilo”.

Decisão do STF

Em 2021, o Supremo aprovou a tese de que “o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais” não é compatível com a Constituição.

Na ocasião, a corte abriu uma exceção: “Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.

Em resumo, os ministros decidiram que não existe, no Brasil, um direito ao esquecimento baseado na passagem do tempo, mas que é possível analisar cada caso concreto para verificar se houve abuso ou excesso na forma de relato da informação.

STF decidiu que direito ao esquecimento não é compatível com a Constituição – Gustavo Moreno/SCO/STF

O recurso extraordinário em questão foi levado ao STF pelos irmãos de Aída Curi, vítima de um assassinato de grande repercussão praticado nos anos 1950 no Rio de Janeiro. O crime foi reconstituído no programa televisivo “Linha Direta”, da Rede Globo, sem autorização da família, que buscava reparação.

O advogado Francisco Brito Cruz, diretor-executivo do centro de pesquisas InternetLab (voltado às áreas de tecnologia e direitos humanos), lembra que o STF não declarou a inconstitucionalidade de uma lei sobre direito ao esquecimento — até porque não existe norma do tipo no país, ao menos por enquanto.

Na verdade, o Supremo interpretou um caso em que a parte autora buscava o reconhecimento desse direito dentro da Constituição. Na prática, não foi proibida uma lei que trate do assunto.

Já o advogado Rafael Maciel, especializado em Direito Digital, ressalta que, embora a corte tenha definido o direito ao esquecimento como a remoção baseada na passagem do tempo, a maioria dos pedidos relacionados ao tema que chegam à Justiça “não são necessariamente só pelo lapso temporal”.

Nesses casos, os argumentos são também sobre a finalidade da divulgação das informações, o que aproxima tais situações do conceito de desindexação.

Codificação

André Zonaro Giacchetta, advogado, diz não ter certeza se o Código Civil é o “local adequado” para tratar do direito ao esquecimento.

“O Código Civil é sempre um conjunto de regras que deve ter a maior perpetuidade possível” e “tem de orientar a sociedade pelo maior tempo possível”. Para temas mais específicos, como esse, ele enxerga a criação de regras próprias como uma melhor opção.

Giacchetta questiona até mesmo a necessidade de uma regra específica sobre o tema, visto que o STF já fez a ressalva da discussão pontual quanto a eventuais abusos ou excessos nos casos concretos: “É o que os juízes já fazem hoje”.

Maciel também não se sente seguro em dizer que a inclusão dos direitos ao esquecimento e à desindexação no Código Civil é necessária.

Conflito

Para ele, após a decisão do STF, “não há que se falar mais em direito ao esquecimento por lapso temporal”. O advogado vê uma clara incompatibilidade da redação sobre direito ao esquecimento proposta pelo grupo de trabalho com a tese aprovada pelos ministros. 

Isso porque a sugestão traz como requisito para a remoção de conteúdo na origem justamente o “transcurso de lapso temporal razoável”.

Francisco Cruz tem entendimento semelhante. Na sua visão, o sentido mais amplo da decisão do STF foi o de que ninguém pode editar ou apagar a história. Esse princípio vai de encontro à proposta da comissão de revisão do Código Civil.

O diretor do InternetLab destaca que o Supremo pode reavaliar o assunto, já que o precedente se baseou em um caso concreto, e não houve análise da constitucionalidade desse dispositivo específico sugerido pela comissão. De qualquer forma, ele acredita que “um choque aconteceria” se isso fosse feito.

Membros da comissão de atualização do Código Civil durante reunião – Waldemir Barreto/Agência Senado

Redação problemática

“Essas redações, ainda em anteprojeto, estão bastante imaturas”, aponta Maciel. “Elas precisam de uma discussão um pouco mais aprofundada. E justamente percebe-se uma falta de tecnicidade do próprio Direito Digital.”

Se os requisitos listados no artigo proposto forem entendidos como cumulativos — ou seja, se a ideia é que todos precisam ser preenchidos para a concessão do pedido —, Giacchetta considera que a sugestão está de acordo com a orientação do STF.

Embora entenda que essa é a única interpretação possível, ele alerta que a redação não deixa claro se os requisitos de fato são cumulativos ou se bastaria a presença de um ou alguns deles.

A condição que alinha a proposta à decisão do Supremo, segundo o advogado, é a “presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação”. Essa foi exatamente a exceção feita pela corte, para permitir a análise caso a caso.

“Parece-me que a tentativa é fazer com que esse artigo represente a própria decisão do STF”, pontua Giachetta.

O advogado ainda constata a ideia de dar segurança jurídica ao tema, já que atualmente não existem condições estabelecidas para a remoção de conteúdo nesses casos. Isso é especialmente positivo para as plataformas, que conseguem saber de forma antecipada se devem ou não excluí-lo.

Por outro lado, ele identifica outro problema no artigo proposto: a previsão relativa aos dados e às informações tirados de processos que correm em segredo de Justiça. A comissão sugeriu que isso seja tratado como obtenção ilícita, mas Giacchetta lembra que, no Brasil, é comum que acontecimentos de processos em sigilo venham a público.

Mesmo assim, ele considera que a ideia por trás disso é importante: “Não é porque alguém teve acesso a essas informações que elas devem permanecer públicas”.

  • Por José Higídio – repórter da revista Consultor Jurídico.
  • Fonte: Revista Consultor Jurídico