Não é incomum, nas Varas de Família, vermos pais de altíssimo poder aquisitivo alegarem que “criança não gasta isso” para tentar fixar pensões em valores irrisórios diante de sua realidade financeira. Essa justificativa, repetida quase como um mantra, além de equivocada, fere a lógica do direito alimentar e afronta os princípios constitucionais de proteção à infância e à dignidade da pessoa humana.
O direito aos alimentos não se limita à sobrevivência
O art. 1.694 do Código Civil é claro: os alimentos devem ser fixados conforme as necessidades do alimentando e as possibilidades do alimentante. A interpretação sistemática desse dispositivo, aliada ao art. 227 da Constituição Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, conduz à conclusão de que a pensão não se restringe ao “mínimo existencial”.
Falar em “sustento e estudo” apenas, como se bastasse pagar comida e escola, é reduzir o direito dos filhos a uma vida aquém daquela que teriam se vivessem sob o mesmo teto do alimentante.
O padrão de vida do alimentante é parâmetro obrigatório.
O STJ e diversos Tribunais de Justiça já consolidaram entendimento de que o padrão de vida da criança deve acompanhar o padrão do alimentante. Se o genitor desfruta de viagens internacionais, carros de luxo, restaurantes requintados e moradia em áreas nobres, não é legítimo relegar o filho a um padrão modesto sob a falácia de que “criança não precisa disso”.
A necessidade não é absoluta: é relacional. A criança precisa viver de forma proporcional à realidade social e econômica da família. Não se trata de “capricho”, mas de isonomia material e proteção integral.
O argumento falacioso: “criança não gasta isso”
Esse discurso desconsidera que:
A pensão não cobre apenas gastos diretos, mas também a estrutura necessária para garantir qualidade de vida;
O dever de sustento não é limosna, mas um compromisso jurídico e moral do genitor;“Necessidade” é conceito dinâmico: inclui alimentação, saúde, educação, cultura, lazer, viagens, segurança e, sim, o conforto compatível com o poder econômico dos pais.
Negar isso é negar que o filho tem direito a usufruir do mesmo patamar de bem-estar que o alimentante construiu para si.
A seletividade da paternidade responsável
Quando o alimentante ostenta carros importados, participa de festas de alto padrão, compartilha nas redes sociais viagens luxuosas, mas no processo judicial alega que “o filho não precisa de tanto”, evidencia-se a contradição moral e jurídica. O filho não pede mais do que lhe é de direito: pede apenas que a paternidade ou maternidade seja exercida de forma plena, com responsabilidade e justiça.
A jurisprudência não deixa dúvidas.
O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente decidido que os alimentos devem ser fixados de forma a garantir não só o sustento, mas também a preservação do padrão de vida da criança, sob pena de violação da dignidade humana. O filho não é de “segunda classe” em relação ao pai ou mãe abastados.
Conclusão
A retórica do “criança não gasta isso” é mais do que juridicamente insustentável: é uma tentativa de transformar a obrigação legal em esmola, e a dignidade da criança em uma conta de supermercado.
O dever alimentar vai além de encher a geladeira ou pagar a mensalidade escolar. Ele assegura que a criança cresça, se desenvolva e participe da vida social em igualdade com a realidade econômica do seu genitor.
Negar isso é negar a própria essência da paternidade responsável.
Fonte: JusBrasil
ww.jusbrasil.com.br/artigos/crianca-nao-gasta-isso-o-mito-usado-por-milionarios-para-reduzir-pensao-alimenticia/5016402453?utm_campaign=newsletter-daily_20251009_14796&utm_medium=email&utm_source=newsletter