A necessidade de autorização do Congresso para a venda de terras a estrangeiros protege soberania nacional e evita o canibalismo do território — uma preocupação mundial, em tempos de hipervalorização da produção de alimentos, exploração de minérios e até turismo.

8 de janeiro de 2024

A proteção do mercado e a imposição de restrições a empresas de outros países virou pauta obrigatória num movimento em que a globalização cede espaço à proteção da segurança nacional. É o que afirmam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Reprodução

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) enviou ofícios em 29 de dezembro à Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para evitar a concretização da venda da Eldorado Brasil Celulose para a Paper Excellence.

A medida decorre de um procedimento administrativo que determinou que a Paper Excellence deveria ter obtido autorização prévia do Congresso Nacional, por meio do Incra, para formalizar o contrato de aquisição da Eldorado em 2017. A conclusão é baseada na análise das leis brasileiras sobre compra e arrendamento de terras por estrangeiros.

O negócio, segundo o Incra, representa a aquisição da Eldorado, empresa nacional com propriedade e arrendamento de imóveis rurais, pela CA Investment Brasil, uma companhia brasileira equiparada a estrangeira, uma vez que tem como acionistas a holandesa Paper Excellence e a malaia Fortune Everrich. Por isso, a transação exige aval parlamentar, avaliou o instituto.

A aquisição de terras por estrangeiros no Brasil é regulada pela Lei 5.709/1971, que impede a compra ou o arrendamento de áreas com mais que 50 módulos fiscais por não brasileiros. Um município não pode ter mais do que 25% de seu território sob controle de pessoas físicas ou jurídicas de outros países. Cidadãos e empresas de uma determinada nação não podem ser proprietários de mais do que 10% da área de uma cidade.

O artigo 23, parágrafo 2º, da Lei 8.629/1993, estabelece que compete ao Congresso Nacional autorizar tanto a aquisição ou o arrendamento além dos limites de área e percentual fixados na Lei 5.709/1971, por pessoa jurídica estrangeira ou equiparada, de área superior a 100 módulos de exploração indefinida (MEI). Em relação ao caso concreto, o Incra afirma que os imóveis localizados em Mato Grosso do Sul equivalem a 995,503 MEI, acrescentando que “o números [sic] de MEI será maior caso seja computado a área da matricula n 27043 do SRI da Comarca de Andradina – SP e os imóveis arrendados pela empresa Eldorado Brasil Celulose S.A”.

A exigência de aval do parlamento também consta de normas do Incra, como o Manual de Orientação para Aquisição e Arrendamento de Imóvel Rural por Estrangeiro e a Instrução Normativa 88/2017. Por sua vez, o artigo 15 da Lei 5.709/1971 prevê expressamente que a aquisição ou arrendamento “que viole as prescrições desta Lei, é nula de pleno direito”.

O parecer da Advocacia-Geral da União lançado no mesmo processo administrativo e aprovado pela Subprocuradora-Chefe da Procuradoria Federal Especializada reforça que, uma vez verificado que o negócio foi realizado em desacordo com a legislação vigente, a consequência é a nulidade prevista em lei.
Apesar dessa determinação expressa, o Incra abriu a possibilidade de uma solução negociada entre J&F — controladora da Eldorado — e Paper Excellence, orientando sobre a possibilidade de as empresas desfazerem o negócio voluntariamente.

Defesa da soberania
Especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que a limitação da compra de terras por estrangeiros é uma medida importante para manter a soberania do território nacional. Especialmente porque, com o real desvalorizado perante o dólar, o euro e outras moedas, brasileiros ficariam em desvantagem perante a estrangeiros no mercado nacional, especialmente na agropecuária.

O jurista Lenio Streck avalia que a decisão do Incra está correta. Ele diz que as ações em tramitação no Supremo Tribunal Federal que visam à declaração de inconstitucionalidade da Lei 5.709/1971 partem de uma premissa equivocada, pois a Constituição de 1988 não apenas recepciona a norma como reforça sua constitucionalidade.

“Explico: uma vez que a soberania é condição de existência do próprio Estado, da dignidade humana e de diversos direitos sociais, também deve ser resguardada da falta de proteção estatal. A soberania deve ser protegida. E, ao mesmo tempo, protege. Se o artigo 190 determina que a lei limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por estrangeiro, a norma restaria carente da regulamentação constitucionalmente exigida se uma empresa estrangeira pudesse simplesmente evitar as exigências legais”, explica o professor.

A proteção estatal não pode ser exagerada, aponta Lenio. Por exemplo, o poder público não poderia vedar a compra de terras por estrangeiros em qualquer circunstância. No entanto, ressalta, o Estado jamais poderia proteger de forma deficiente as áreas nacionais, permitindo que pessoas e empresas de outros países as comprassem irrestritamente. Caso isso ocorresse, “o Estado brasileiro estaria protegendo insuficientemente a soberania, incidindo, portanto, em uma inconstitucionalidade”, diz o colunista da ConJur.

Porém, declara, esse exame de proporcionalidade nem é necessário nas ações que correm no STF. “Isso porque a Constituição já estabelece que a soberania tem precedência em face dos demais direitos fundamentais colidentes quando se tratar de aquisição de propriedades rurais por estrangeiros. É uma exigência constitucional: o Estado jamais poderia deixar de proteger a soberania nacional. Soberania quer dizer: aqui tem lei que protege as terras brasileiras. Simples assim.”

O STF julga ações (ADPF 342 e ACO 2.463) que visam derrubar a limitação à compra de terras por estrangeiros. Os autores argumentam que a restrição viola os preceitos fundamentais da livre iniciativa, do desenvolvimento nacional, da igualdade, de propriedade e de livre associação. Sustentam que, ao limitar as aquisições de terras por empresas nacionais com capital estrangeiro, a lei dificulta o financiamento da atividade agropecuária e diminui a liquidez dos ativos imobiliários, com perda para as empresas agrárias.

As limitações legais à aquisição de terras por estrangeiros são uma escolha legítima dos representantes do povo — que é soberano na democracia — para a proteção do território brasileiro, destaca o advogado Walfrido Warde.

“É uma forma de evitar o direito de propriedade seja distorcido e usado para permitir a ocupação estrangeira do país, ou seja, a compra de grandes extensões de terra por estrangeiros. Todos os países que compreendem que a defesa da soberania é indispensável para a competitividade perante outras nações têm medidas protetivas de seus interesses”, afirma.

Warde aponta que o sistema de Justiça desses países — que engloba não só o Judiciário, mas também o exercício do poder sancionatório e regulador de órgãos da administração pública — atua deliberadamente para proteger os interesses nacionais aos estrangeiros.

No Brasil, isso não significa uma afronta aos direitos dos estrangeiros, regulamentados pela Lei de Migração (Lei 13.445/2017), e sim que eles devem se submeter aos interesses nacionais, aos objetivos da nação, analisa o advogado.

Projeto de lei
O Senado aprovou, em dezembro de 2020, o Projeto de Lei 2.963/2019, que facilita a aquisição de propriedades rurais no Brasil por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. A proposta está em tramitação na Câmara dos Deputados.

O PL revoga a 5.709/1971 e dispensa a necessidade de autorização ou licença para compra e posse por estrangeiros quando se tratar de imóveis rurais com áreas não superiores a 15 módulos fiscais (no Brasil, o valor do módulo fiscal é fixado pelo Incra e varia de 5 a 110 hectares, dependendo do município).

O Ministério Público Federal emitiu nota técnica contra o projeto. O órgão destaca que a proposta contraria o parecer da Advocacia-Geral da União, de 2010, que concluiu que a Lei 5.709/1971 havia sido recepcionada pela Constituição de 1988, “especialmente pela sua compatibilidade com a garantia constitucional do desenvolvimento nacional e com os princípios da soberania, da independência nacional e da isonomia entre brasileiros e estrangeiros”.

No entendimento do MPF, o PL retira as restrições que recaem sobre as aquisições dos imóveis rurais por empresas brasileiras, ainda que sejam controladas por estrangeiros, flexibilizando exageradamente as regras atuais. “A prevalecer o projeto, bastaria a criação formal de pessoa jurídica brasileira por estrangeiro em território nacional para possibilitar a aquisição de terras por estrangeiros”, afirma o órgão.

A procuradoria destaca ainda que a medida vai na contramão da tendência internacional. Como exemplo, cita que, em países com grandes dimensões de terras, como Estados Unidos e Canadá, é possível que os entes públicos imponham suas próprias restrições sobre o domínio de áreas por estrangeiros.

Para o MPF, a soberania deve ser compreendida não só quanto às fronteiras, mas também nos campos alimentar e econômico, fundamentais para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

“A flexibilização exagerada das regras para aquisição por pessoas jurídicas estrangeiras não se coaduna com os ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana, da erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, isonomia, função social da propriedade, justiça social, desenvolvimento sustentável, segurança jurídica e reforma agrária”, opina o MPF.

  • Por Sérgio Rodas – correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
  • Fonte: Revista Consultor Jurídico

De acordo com o colegiado, é preciso flexibilidade para conciliar o cumprimento das formalidades legais com o respeito à última vontade do testador

08 de Janeiro de 2024

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, validou um testamento particular em que as testemunhas não foram capazes de confirmar em juízo a manifestação de vontade da testadora, a data em que o testamento foi elaborado, o modo como foi assinado e outros elementos relacionados ao ato.

De acordo com o colegiado, é preciso flexibilidade para conciliar o cumprimento das formalidades legais com o respeito à última vontade do testador.

No caso dos autos, duas pessoas interpuseram recurso especial no STJ depois que as instâncias ordinárias negaram seus pedidos de abertura, registro e cumprimento de um testamento particular, pois as testemunhas ouvidas em juízo não esclareceram as circunstâncias em que o documento foi lavrado nem qual era a manifestação de vontade da testadora.

Apuração das instâncias ordinárias se distanciou dos requisitos legais

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, observou que a confirmação do testamento particular está condicionada à presença de requisitos alternativos: ou as testemunhas confirmam o fato da disposição ou confirmam que o testamento foi lido perante elas e que as assinaturas no documento são delas e do testador.

Contudo, a ministra apontou que, na hipótese dos autos, as testemunhas foram questionadas especificamente sobre a vontade da testadora, as circunstâncias em que foi lavrado o testamento, a data ou o ano de sua assinatura, se foi assinado física ou eletronicamente e se a assinatura se deu em cartório ou na casa da testadora.

Segundo a relatora, a apuração fática das instâncias ordinárias se distanciou dos requisitos previstos no artigo 1.878, caput, do Código Civil (CC), uma vez que as testemunhas foram questionadas sobre detalhes distintos daqueles previstos em lei.

“O legislador não elencou uma parte significativa dos elementos fáticos que foram apurados nas instâncias ordinárias porque o distanciamento temporal entre a lavratura do testamento e a sua confirmação pode ser demasiadamente longo, inviabilizando que as testemunhas confirmassem, anos ou décadas depois, elementos internos ou inerentes ao testamento”, declarou.

Para o STJ, é possível flexibilizar as formalidades exigidas para a validade do testamento

A relatora também ressaltou que, tendo como base a preservação da vontade do testador, o STJ possui jurisprudência consolidada no sentido de que é admissível alguma espécie de flexibilização nas formalidades exigidas para a validade de um testamento.

A título de exemplo, a ministra citou a decisão proferida no REsp 828.616, em que se reconheceu que o descumprimento de determinada formalidade – no caso, a falta de leitura do testamento perante três testemunhas reunidas concomitantemente – não era suficiente para invalidar o documento, pois as testemunhas confirmaram que o próprio testador foi quem leu o conteúdo para elas e, ainda, confirmaram as assinaturas presentes no testamento.

“O exame da jurisprudência revela que esta corte tem sido ciosa na indispensável busca pelo equilíbrio entre a necessidade de cumprimento de formalidades essenciais nos testamentos particulares (respeitando-se, pois, a solenidade e a ritualística própria, em homenagem à segurança jurídica) e a necessidade, também premente, de abrandamento de determinadas formalidades para que sejam adequadamente respeitadas as manifestações de última vontade do testador”, concluiu Nancy Andrighi ao dar provimento ao recurso especial.

Fonte: STJ

A Constituição Federal de 1988, pela primeira vez, inscreveu a defesa do consumidor entre os direitos fundamentais

08 de Janeiro de 2024

Constituição Federal de 1988, pela primeira vez, inscreveu a defesa do consumidor entre os direitos fundamentais. Até então, o Brasil não contava com uma proteção jurídica sistematizada para o consumidor em razão de sua condição de sujeito vulnerável do mercado.

Ao colocar “a defesa do consumidor” como obrigação do Estado, prevista no rol de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, XXXII), o texto constitucional a tornou cláusula pétrea, ou seja, não pode ser eliminada nem alterada por emenda. Mais adiante, o texto afirma que a ordem econômica, entre outros princípios, deve observar a defesa do consumidor. Por fim, nas Disposições Constitucionais Transitórias, ficou estabelecido que o Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação da Constituição, teria de elaborar o Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Embora fora do prazo, a Lei 8.078 foi promulgada em 11 de setembro de 1990, entrando em vigor seis meses depois. O CDC colocou o Brasil numa posição de vanguarda na defesa dos direitos do consumidor e se tornou um importante marco do fortalecimento da cidadania.

Em seu artigo 6°, o código passou a assegurar a proteção da vida e da segurança contra os riscos de produtos e serviços, com efetiva prevenção e reparação, inclusive invertendo-se o ônus da prova pelo juiz; a informação adequada; a proibição da publicidade enganosa e abusiva; a modificação das cláusulas contratuais abusivas, ou sua revisão quando fatos supervenientes as tornarem excessivamente onerosas; o acesso à Justiça; a participação na formulação de políticas de consumo e a educação para o consumo, além da exigência de adequação e eficiência nos serviços públicos.

A proteção do consumidor é uma das múltiplas faces do exercício da cidadania

Esta quarta matéria da série especial Faces da Cidadania mostra como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao interpretar e aplicar as normas consumeristas, vem atuando para garantir o pleno exercício dos direitos do cidadão também nesse campo. Mostra ainda, pelo exemplo de uma iniciativa do Procon do Distrito Federal, como é possível empoderar o consumidor por meio da informação sobre tais direitos.

Nas mais de três décadas que se seguiram à promulgação da Constituição e do CDC, o STJ produziu ampla jurisprudência sobre a matéria, com mais de 20 súmulas relacionadas ao direito do consumidor, dentre as quais se destacam:

Para a ministra Nancy Andrighi, o consumo cada vez maior de bens, serviços e informações passou a ser um critério de aferição da cidadania. A condição de consumidor, disse, é um importante papel que assumem os cidadãos na sociedade contemporânea, “sendo fácil perceber que o direito do consumidor está intimamente relacionado à tutela da cidadania”.

Complemento ao microssistema de processos coletivos

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e membro da comissão que elaborou o anteprojeto do CDC, o professor e advogado Kazuo Watanabe destacou que o código é reconhecido por seu conteúdo principiológico, isto é, “como estatuto que contém princípios tutelares abrangentes, e não normas específicas voltadas a fatos típicos”.

Na sua avaliação, a lei vem cumprindo adequadamente a função de proteger os consumidores, ainda que, em razão do tempo decorrido, tenha precisado de atualizações – como as que disciplinaram o comércio eletrônico e trataram do superendividamento (Lei 14.181/2021).

O professor também ressaltou que o CDC complementou o sistema brasileiro de processos coletivos – o qual, até então, contava apenas com a ação popular e a Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), que tutela interesses difusos. “O Código de Defesa do Consumidor, além de dispor sobre os aspectos faltantes na lei de 1985, como a disciplina da competência, da coisa julgada, das espécies de provimentos, criou e disciplinou mais duas espécies de ação coletiva: a que tutela os interesses coletivos stricto sensu e a que tutela os interesses individuais homogêneos”, explicou.

Cidadania instrumental do consumidor

Para Dennis Verbicaro, procurador do Estado do Pará, doutor e professor de direito do consumidor, a identidade coletiva como consumidor permite a ocupação de mais espaços políticos de deliberação, o que influi diretamente no aprimoramento dos deveres éticos do fornecedor. “É o que chamo de cidadania instrumental do consumidor, ou seja, a cidadania emerge da identidade política comum de todos nós, que nos impõe o dever de participar desse diálogo com os agentes econômicos do mercado, sob a mediação do Estado e em prol da harmonia das relações de consumo”, declarou. 

Segundo o procurador, essa nova perspectiva de grupo ou de coletividade de consumidores tem uma capacidade muito maior de transformar a realidade: “Essa rede solidária de influência e articulação política impõe aos empresários a mudança de comportamento, seja voluntariamente – sob a forma de marketing de aproximação –, seja coercitivamente – pela sujeição jurídica às normas administrativas, civis e penais de proteção ao consumidor, cuja exigibilidade é garantida pela atenta e oportuna atuação cívica da sociedade e pela fiscalização diligente do Estado”.

Quem pode ser considerado consumidor

Estendendo a ideia de consumidor para muito além do adquirente de bens ou serviços, o artigo 17 do CDC prevê a figura do consumidor por equiparação (bystander): também goza da proteção da lei aquele que, mesmo sem participar diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do acidente de consumo, decorrente de defeito exterior que ultrapassa o objeto do produto ou do serviço e põe em risco sua segurança física ou psíquica.

“Na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade empresarial destinada à fabricação de produtos ou à prestação de serviços, é possível, em virtude da caracterização do acidente de consumo, o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação, o que atrai a incidência das disposições do CDC”, disse a ministra Nancy Andrighi.

A ministra relatou o REsp 2.018.386, no qual a Segunda Seção estabeleceu que as vítimas de supostos danos decorrentes da exploração de uma usina hidrelétrica podem ser consideradas consumidoras por equiparação. Elas alegaram que a produção de energia elétrica no complexo de Pedra do Cavalo (BA) causou danos materiais e morais em razão do impacto na sua atividade pesqueira e de mariscagem.

O colegiado, no julgamento do CC 143.204, em hipótese envolvendo derramamento de óleo, também considerou que os pescadores artesanais prejudicados eram vítimas de acidente de consumo, motivo pelo qual estaria caracterizada a figura do consumidor por equiparação e justificada a incidência do CDC.

Limites da publicidade no CDC

Uma das decisões mais impactantes do STJ na interpretação do CDC foi o primeiro precedente em que se considerou abusiva a publicidade de alimentos dirigida direta ou indiretamente ao público infantil. O julgamento ocorreu em 2016 na Segunda Turma (REsp 1.558.086).

Para o relator do recurso, ministro Humberto Martins, a decisão sobre compra e consumo de gêneros alimentícios, sobretudo em época de crise de obesidade, deve caber aos pais, não às crianças. “Daí a ilegalidade, por abusivas, de campanhas publicitárias de fundo comercial que utilizem ou manipulem o universo lúdico infantil (artigo 37, parágrafo 2º, do CDC)”, afirmou à época.

Da mesma forma, o tribunal tem vários outros entendimentos sobre os limites da publicidade diante dos direitos do consumidor – entre eles, o que considerou enganosa, capaz de induzir em erro o consumidor, a mensagem que consta em letras minúsculas nas informações contratuais (REsp 1.599.423).

Responsabilidade solidária da cadeia de produção

O CDC também ampliou o campo de incidência da responsabilidade, que passou a alcançar não apenas o fornecedor diretamente ligado ao evento danoso, mas toda a cadeia produtiva envolvida na atividade de risco.

A Quarta Turma, no REsp 1.358.513, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, decidiu que uma empresa engarrafadora de gás de cozinha e uma distribuidora – revendedora exclusiva da primeira – eram responsáveis solidárias por atropelamento ocorrido durante a entrega do produto, que culminou na morte de um menino de quatro anos, em 2008. A criança andava de bicicleta quando foi atingida pelo caminhão de entrega, no momento em que o motorista realizava manobra em marcha à ré.

Conforme o relator, o CDC estabelece expressamente, no artigo 34, que o fornecedor de produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos. “Ou seja, estabelece a existência de responsabilidade solidária de quaisquer dos integrantes da cadeia de fornecimento, que venham a dela se beneficiar, pelo descumprimento dos deveres de boa-fé, transparência, informação e confiança, independentemente, inclusive, de vínculo trabalhista ou de subordinação”, afirmou Salomão.

O superendividamento na mira das instituições

De acordo com o ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido em abril de 2023), o superendividamento se tornou uma grande preocupação do direito do consumidor em todo o mundo, devido às facilidades de acesso ao crédito.

Ele foi o relator do REsp 1.584.501, no qual a Terceira Turma analisou se o desconto de empréstimo consignado poderia alcançar quase o valor total do salário do devedor. Por reconhecer que tal situação trazia risco à subsistência do consumidor, o colegiado limitou a 30% os descontos na conta em que ele recebia seus rendimentos.

A decisão da Terceira Turma foi tomada quando ainda tramitava no Congresso o projeto que viria a se transformar na Lei 14.181/2021, a chamada Lei do Superendividamento, que disciplina o crédito ao consumidor. Mesmo reconhecendo que as relações contratuais são regidas pelo princípio da autonomia privada, Sanseverino ponderou que esse princípio se submete a outros, como o da dignidade da pessoa humana.

O problema do superendividamento do consumidor tem recebido atenção especial do Poder Judiciário. Em agosto de 2022, foi lançada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento do Consumidor, elaborada por um grupo de especialistas que teve o ministro do STJ Marco Buzzi como coordenador.

Em novembro do mesmo ano, o STJ promoveu o seminário O Tratamento do Consumidor Superendividado à Luz da Lei 14.181/2021: da trajetória legislativa à sua efetivação. Na opinião do ministro Buzzi, coordenador-geral do evento, o controle do superendividamento exige não apenas a atuação do Judiciário, mas um conjunto de ações a serem desempenhadas por vários segmentos sociais e instituições em favor de uma necessária mudança de mentalidade.

Relação entre o direito do consumidor e a proteção de crédito

A relação entre direito do consumidor e proteção de crédito é uma questão frequente nos processos que chegam ao STJ. Em 2009, ao julgar os Temas 40 e 41 dos recursos repetitivos (REsp 1.062.336), a Segunda Seção discutiu a possibilidade de indenização por danos morais diante da falta da comunicação prévia ao consumidor sobre a inscrição de seu nome em cadastros restritivos de crédito – exigência do parágrafo 2º do artigo 43 do CDC –, nos casos em que exista inscrição anterior feita regularmente. O julgamento levou à edição da Súmula 385.

A corte entendeu que o dano moral é configurado quando a entidade de proteção ao crédito aponta como inadimplente alguém que efetivamente não o é. Quando a anotação é irregular, mas o consumidor tem contra si alguma inscrição legítima, não se verifica o direito à indenização, mas apenas ao cancelamento.

Recentemente, no julgamento do REsp 2.056.285, a Terceira Turma estabeleceu que a notificação do consumidor sobre a inscrição de seu nome em cadastro restritivo de crédito exige o envio de correspondência ao seu endereço, sendo vedada a notificação exclusiva por e-mail ou mensagem de texto de celular (SMS).

Escola do consumidor fornece cursos para a população e para fornecedores

Em funcionamento desde 2019, a Escola do Consumidor integra o Instituto de Defesa do Consumidor do Distrito Federal (Procon-DF) e ministra, gratuitamente, cursos a respeito dos direitos dos consumidores – voltados tanto para a população em geral quanto para os fornecedores.

Inicialmente, as aulas eram ofertadas apenas de maneira presencial, mas desde 2020, na pandemia da Covid-19, a instituição passou a publicar vídeos de orientação em seu canal no YouTube, bem como a oferecer cursos on-line. Os temas variam de acordo com as demandas que chegam à instituição e abordam questões como “Educação financeira”, “Formação prática ao micro e pequeno empresário” e “Introdução ao direito do consumidor”. No YouTube, o vídeo mais visualizado fala de “Parcelamento automático da fatura do cartão de crédito”.

O objetivo da escola, segundo o diretor do Procon-DF, Marcelo de Souza do Nascimento, é utilizar uma linguagem clara, de fácil acesso, para empoderar o consumidor por meio da informação. “O consumidor bem informado poderá exercer o seu direito diretamente com o fornecedor”, afirmou. 

Nascimento comentou que a questão do consumidor é transversal a diversas outras, de modo que os direitos e deveres relacionados diretamente ao consumo, muitas vezes, precisam ser abordados em conjunto com discussões mais amplas sobre cidadania, que envolvem, por exemplo, a importância do saneamento básico, os direitos das pessoas com deficiência e até mesmo a discriminação racial.

Ao todo, 2.100 alunos já participaram de alguma formação oferecida pelo Procon-DF. Atualmente, a escola também organiza cursos voltados a segmentos específicos, como o setor varejista, e possui um acordo de cooperação técnica com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) para auxiliar os consumidores superendividados.

Fonte: STJ

MURRAY ADVOGADOS

Alberto Murray Neto

MURRAY ADVOGADOS

O Superior Tribunal de Justiça vai encerrar o ano de 2023 com resultados positivos quanto ao trato dos recursos repetitivos, o principal instrumento que a corte possui, até o momento, para vincular as posições que adota e, dessa maneira, reduzir a recorribilidade.

19 de dezembro de 2023

Uso de repetitivos é a principal forma de o STJ construir jurisprudência vinculante

Neste ano, a corte alcançou 34 temas julgados e ao menos 59 afetados — há uma afetação ainda em julgamento, com término previsto para esta segunda-feira (18/12).

O rito dos recursos repetitivos foi estabelecido pela Lei 11.672/2008 e permitiu ao STJ fixar teses jurídicas que devem obrigatoriamente ser aplicadas pelas instâncias ordinárias para solucionar múltiplos processos com a mesma controvérsia.

Cada tese firmada significa milhares de processos que não precisarão ser reapreciados pelo STJ. Desde 2008, o tribunal afetou 1.222 temas e julgou 949 deles. Restam 89 pendentes de julgamento, sendo que a corte cancelou 184 temas.

Ministros do tribunal creditam ao uso dos repetitivos o fato de a distribuição processual não ser ainda pior do que a atual, apesar de o número de casos enviados ao STJ ter batido recorde histórico em 2023 — a expectativa é terminar o ano com 465 mil novas ações.

Essa eficiência atual se deve ao uso da inteligência artificial. Neste ano, 72% dos temas afetados aos recursos repetitivos foram identificados com ajuda de um robô, no chamado Sistema Athos.

Por meio dele, o tribunal identifica antes mesmo da triagem os processos que podem ser submetidos à afetação para julgamento sob o rito dos repetitivos.

Repetitivos para julgamento
1ª Seção42
2ª Seção14
3ª Seção23
Corte Especial13
TOTAL92

Essa identificação é feita pela Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac), que prepara um relatório recomendando ao relator da ação a afetação.

Se o magistrado decidir seguir a recomendação, vai submeter essa decisão ao colegiado responsável por meio de julgamento virtual. Em 2023, a Cogepac criou 116 controvérsias com potencial para serem apreciadas sob o rito dos repetitivos.

A eficiência do Athos em seu uso na afetação de temas mostra que, por mais um ano, as instâncias ordinárias não deram a devida atenção à indicação de temas pelos quais o STJ poderia firmar precedentes qualificados.

O tribunal, por meio da Cogepac, colhe indicações das cortes de segundo grau sobre controvérsias. Há ainda a possibilidade de definição de teses pelo julgamento de recursos interpostos ao STJ contra julgamentos de incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDRs).

Como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, mesmo essa ferramenta de uniformização de jurisprudência tem sido pouco utilizada pelos tribunais de segundo grau por causa de entraves legais, regimentais e práticos.

A preocupação de contar com a ajuda das instâncias ordinárias para identificar essas demandas de massa foi ressaltada pela ministra Assusete Magalhães, presidente da Cogepac, em evento sobre precedentes qualificados sediado pelo STJ em novembro.

Os dados sobre o trabalho da comissão na identificação desses temas repetitivos seguem uma alta iniciada em 2020. Desde então, mais de metade dos temas afetados foi motivada pelo trabalho interno feito com ajuda da inteligência artificial.

Presidente da Comissão Gestora de Precedentes, ministra Assusete Magalhães cobrou das instâncias ordinárias mais interesse na afetação de temas

Resultado positivo
Outro índice a ser celebrado pelo STJ é a redução do tempo entre a afetação de um recurso repetitivo e o seu efetivo julgamento.

O artigo 1.037 do Código de Processo Civil estabelece que esse prazo deve ser de, no máximo, um ano. Já a meta 7 do Conselho Nacional de Justiça é um pouco mais ousada: 365 dias entre a data da afetação e a publicação do acórdão.

O STJ vai encerrar 2023 com a média de 377,9 dias entre esses marcos temporais exigidos pelo CNJ. Esse dado aumenta graças ao período do recesso judicial. Até novembro, a marca era de 353,7 dias.

Restam 92 repetitivos a serem julgados, a maioria pela 1ª Seção, que é a campeã no uso dessa ferramenta, provavelmente graças à natureza do trabalho executado — o colegiado se dedica a temas de Direito Público, terreno fértil para demandas massificadas.

Hoje, ela é a única seção que reserva uma sessão de julgamento ao mês especificamente para estabelecer teses sob o rito dos repetitivos. Em 2023, o colegiado resolveu 19 controvérsias com julgamento de mérito.

Outro destaque vem da 3ª Seção, que historicamente era a que menos utilizava os repetitivos, uma vez que se dedica a temas criminais. Neles, a uniformização de posições é mais difícil, devido ao impacto de filigranas nas definições judiciais.

Como o recém-criado filtro da relevância não afetará os colegiados de Direito Penal, já que esses casos terão relevância presumida, fará bem à 3ª Seção fixar a maior quantidade de teses possíveis. Em 2023, foram 12.

Por outro lado, há uma queda de interesse na 2ª Seção, que faz um uso mais restrito dos repetitivos. A afetação, em regra, só ocorre quando a 3ª e a 4ª Turmas já se debruçaram sobre o assunto e estabeleceram suas posições.

Foram apenas três teses firmadas neste ano. Isso apesar de o colegiado ter a posição privilegiada de quase sempre ter a palavra final sobre as controvérsias, uma vez que muito pouco do Direito Privado pode ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Por fim, a Corte Especial, que reúne os 15 ministros mais antigos do tribunal, afetou oito temas ao rito dos repetitivos e, com isso, tem 13 para julgamento. Neste ano, o colegiado não conseguiu encerrar nenhum julgamento para definição de tese.

*Por Danilo Vital

Fonte: Consultor Jurídico

Na união estável, o patrimônio adquirido graças ao esforço comum do casal deve ser partilhado em igual proporção, independentemente do quanto cada um contribuiu para a aquisição. Ficam excluídos da partilha, porém, os bens adquiridos após a separação de fato.

18 de dezembro de 2023

Separação de fato é aspecto importante a ser observado em ações de partilha

Esse foi o entendimento da juíza Adriana Bodini, da 1ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional 3 (SP), para determinar que uma mulher fique com 50% dos bens que foram adquiridos junto com seu ex-companheiro até o momento em que ambos se separaram de fato.

Segundo a mulher, o ex-companheiro se negou a repartir os bens adquiridos pelos dois no decorrer de união estável. Ela, então, ajuizou ação de partilha pedindo a divisão do patrimônio, na proporção de 50% para cada um. Em seguida, o homem contestou a ação.

Segundo ele, em um acordo extrajudicial sua ex-companheira renunciou à divisão dos bens, aceitando, em contrapartida, receber uma pensão alimentícia vitalícia. A mulher, porém, manteve o pedido de partilha.

“A ação é em parte procedente”, adiantou a juíza ao analisar o caso. Adriana Bodini citou, então, o artigo 1.725 do Código Civil, que trata do regime da comunhão parcial de bens. Segundo ela, à luz do dispositivo, os bens adquiridos pelo casal na constância da união estável foram adquiridos pelo esforço comum de ambos e, por isso, devem ser divididos.

Contudo, observou a juíza, há um fator importante a ser considerado em pedidos de partilha: a separação de fato do casal — o que, no caso em questão, deu-se em junho de 2020. Nesse sentido, a separação de fato é elemento jurídico suficiente “para que não mais se comuniquem os bens” das partes, destacou Adriana. E isso, aplicado ao caso concreto, deixa fora da partilha os bens adquiridos pelo homem em data posterior à separação de fato — situação de dois imóveis e de cotas de uma sociedade pleiteados pela mulher.

Feita a observação, a juíza julgou parcialmente procedente o pedido da autora e determinou a partilha, em proporções iguais entre os litigantes, de dois imóveis e dos valores obtidos por meio de um aluguel.

Processo 1001089-32.2023.8.26.0003

Fonte: TJSP

Sistema enviará aviso simultâneo para bancos, operadoras e Anatel

19/12/2023

O governo federal vai lançar, nesta terça-feira (19), o aplicativo Celular Seguro, que permitirá o bloqueio imediato de linhas telefônicas e do próprio aparelho de telefone móvel em casos de roubo e furto.

Para utilizar o aplicativo, a pessoa deverá cadastrar os dados em uma página na internet a ser divulgada pelo governo federal. “Caso você seja roubado, é só acionar o sistema por um computador que operadora telefônica e bancos são notificados no mesmo instante, bloqueando acessos”, explicou o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta, em postagem nas redes sociais.

“Uma medida importante para diminuir a dor de cabeça e as perdas financeiras de quem passa por furto ou roubo. Amanhã já estará disponível nas lojas de aplicativos”, completou o ministro.

A nova plataforma foi desenhada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em parceria com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). De acordo com o secretário-executivo da pasta, Ricardo Cappelli, os celulares roubados serão transformados “num pedaço de metal inútil” após o bloqueio.

“Com apenas um clique, a vítima enviará um aviso simultaneamente para a Anatel, para os bancos, para as operadoras de telefonia e para os demais aplicativos”, anunciou.

*Por Pedro Rafael Vilela – Repórter da Agência Brasil – Brasília

Fonte: Agência Brasil