A oscilação da taxa Selic, o principal instrumento de política monetária para combate à inflação no Brasil, é um elemento chave na análise do Superior Tribunal de Justiça sobre a conveniência de seu uso na correção de dívidas civis impostas em decisões judiciais.
O tema, que por sua importância tem sido alvo de uma longa discussão judicial, está em análise na Corte Especial, que reúne os 15 ministros mais antigos do STJ. O julgamento está empatado em 2 votos a 2 e foi interrompido por pedido de vista do ministro Benedito Gonçalves.
2 de agosto de 2023
Até esse julgamento, a posição prevalente no tribunal é de que as dívidas civis devem mesmo ser corrigidas com base na Selic, a taxa fazendária que seria a mencionada no artigo 406 do Código Civil. A posição se baseia em um precedente de 2008 da própria Corte Especial, o EREsp 727.842.
A proposta do relator, ministro Luis Felipe Salomão, é de, nos casos de dívida civil, substituir a Selic pela taxa de juros de 1% ao mês, conforme definido no artigo 161, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional. Incidiria, ainda, correção monetária conforme o índice praticado em cada tribunal.
Por enquanto, a ideia foi repelida pelos ministros Raul Araújo e João Otávio de Noronha, que não veem margem para que o Judiciário escolha livremente qual índice deve ser usado para aplicar o artigo 406 do Código Civil.
Para o ministro Salomão, o uso da Selic não é o mais adequado porque, entre outros fatores, permite o que tem definido como “oscilação anárquica” dos juros. Em julgamentos passados, ele exemplificou o fato de os juros terem alcançado 12,31% ao ano em 2005 e 1,3% ao ano em 2012, períodos em que a inflação foi praticamente idêntica (5,69% e 5,84% ao ano).
O problema é agravado pela introdução de duas formas de uso da taxa fazendária. Na terça-feira, em voto-vista regimental, o ministro trouxe novos dados, acompanhados de pedidos de consideração aos nove colegas que ainda poderão votar.
Juros composto x acumulado mensal
A Selic foi idealizada pelo Banco Central em uma fórmula de juros compostos — os chamados “juros sobre juros” —, com capitalização feita a cada dia útil. Ou seja, a cada dia a dívida é acrescida de juros, e no dia seguinte esse montante atualizado serve de base de cálculo para a incidência de novos juros.
No caso de uma dívida civil, para se obter a variação da Selic, bastaria multiplicar todos os fatores diários contidos entre o termo inicial e o termo final a ser corrigido. Essa é a forma que a Fazenda Nacional usa para cobrar as dívidas da qual é credora.
A partir de 1995, leis federais editadas criaram uma segunda forma de usar a Selic, desta vez para corrigir os valores que a Fazenda deve pagar como devedora. Esse formato foi alçado à Constituição pela Emenda Constitucional 113/2021.
A fórmula envolve a Selic acumulada mensalmente. Isso significa que o fator diário é multiplicado dentro do período de um mês para saber o acumulado mensal. Para fazer a correção da dívida, basta somar os acumulados mensais no período a que ela se refere.
Esse desvirtuamento criou dois cenários bastante distintos. O voto-vista do ministro Salomão usou como exemplo a variação da Selic no período de 20 anos, entre 1º de janeiro de 2002 e 31 de dezembro de 2021.
Nesse recorte temporal, a Selic calculada pelos juros compostos resultou em variação de 786%. Já a inflação medida pelo IPCA foi de 237%. A diferença de 549%, distribuída entre os 240 meses do período, representaria juros mensais de 2,29% ao ano — um índice bastante alto.
Se no mesmo período o cálculo for feito a partir do método do acúmulo mensal, a variação da Selic cai para 219%. Isso significa que ela sequer alcança os 237% de inflação medida pelo IPCA. Ou seja, ela sequer recomporia a desvalorização da moeda. Não haveria juros de mora a cobrar.
“Distorções assim são passíveis de ocorrer quando se adota Selic para corrigir dívidas civis”, destacou o ministro Salomão, no voto-vista. Em sua análise, o STJ nunca se debruçou sobre qual dessas duas formas deve ser usada ao aplicar a Selic.
Compensa dever?
No recorte temporal do caso em julgamento, o uso da Selic traz um cenário ainda distinto. Ele envolve uma mulher que ganhou na Justiça o direito a ser indenizada por danos morais por causa de um acidente de ônibus que sofreu.
O acidente ocorreu em março de 2013, data a partir da qual começam a correr os juros. A sentença condenatória foi proferida em outubro de 2016, marco inicial da correção monetária. O valor da indenização foi fixado em R$ 20 mil. Até o momento, não houve pagamento.
Até julho de 2023, dez anos depois, qualquer das formas de cálculo envolvendo a Selic se mostraria mais benéfica ao devedor do que o uso de juros simples de 1% ao mês e correção monetária pelo IPCA (Veja a tabela). “Compensa dever em juízo”, resumiu o relator.
Correção da dívida | |
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Indenização a ser corrigida a partir da data do fato, em 2013 | R$ 20 mil |
Em 2023, corrigida pela Selic pelo método de juros compostos | R$ 46,7 mil |
Em 2023, corrigida pela Selic pela soma dos acumulados mensais | R$ 37 mil |
Em 2023, corrigida com juros simples de 1% ao mês e correção pelo IPCA | R$ 51,4 mil |
O voto-vista fez menção a manifestação a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e do Conselho Federal da OAB, que atuam como amici curiae (amigos da corte) no julgamento. Ambas indicaram que, pela variação da Selic, há mês em que os juros pode ser negativos.
“Isso significa que há uma flutuação enorme e que o devedor pode ficar à espera de um mês que seja bom pra ele pra pagar dívida. É loteria. Não é efetivamente o que se espera que o tribunal forneça. O tribunal tem que fornecer segurança”, disse o ministro Salomão.
Para ele, a adoção de juros de 1% ao mês calculados de forma simples, nos termos do Código Tributário Nacional, representa uma solução intermediária quando comparada aos dois métodos que usam a Selic.
“Qual é a maneira mais razoável para corrigir dívidas civis? É aquela que permite juros negativos? Não. É melhor ter uma oscilação tão grande a ponto de prejudicar o devedor, para que ele não consiga pagar divida? Não. É o equilíbrio. É o que se propõe”, encerrou.
Advocacia
Para o advogado Leonardo Amarante, que representa a vítima do acidente no caso em julgamento, a confirmação da Selic representaria a destruição de um sistema jurídico em vigor no Brasil há 100 anos. “E substituir por um outro sistema que é muito pior e não tem nenhuma segurança jurídica, beneficiando o calote e o não pagamento das dívidas”, criticou.
O advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, que representa a OAB, destacou que os dados econômicos que o ministro Salomão usou revelam a improbidade de usar a Selic como parâmetro de juros e correção das dívidas civis, sobretudo em razão de sua volatilidade.
“Em todos os outros lugares do mundo se usa uma taxa fixa de juros para desincentivar a litigância. Tem que custar ficar em juízo. E a Selic não garante isso. Além da insegurança da volatilidade do índice, que é usada como instrumento de política monetária e nada tem a ver com o índice de correção e juros das dívidas judiciais”, apontou.
REsp 1.795.982
*Por Danilo Vital – correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 2 de agosto de 2023, 8h50