O uso de medidas executivas atípicas, como apreensão da CNH ou do passaporte, deve durar tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a convencê-lo de que é mais vantajoso pagar a dívida do que, por exemplo, não poder dirigir ou fazer viagens internacionais.
22 de junho de 2022
Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça denegou a ordem em pedido de Habeas Corpus ajuizado por uma mulher que teve seu passaporte apreendido em setembro de 2019, como modo de coagi-la a pagar uma dívida decorrente de honorários de sucumbência.
Foi a primeira vez que o STJ debateu os limites temporais das medidas executivas atípicas. Até então, a corte só se posicionou sobre o cabimento delas, definindo que dependem de indícios de que o devedor tem fundos para quitar a dívida, além do esgotamento das medidas típicas, como a penhora de bens.
Relator, o ministro Marco Aurélio Bellizze votou por reconhecer o prazo excessivo de duração da apreensão do passaporte, de quase dois anos.
Venceu o voto-divergente da ministra Nancy Andrighi, que identificou a partir do caso concreto que a medida deve continuar até que a devedora cumpra a obrigação.
O contexto e a dívida
O caso trata de condenação a pagar honorários de sucumbência, fixada em 2005, quando a autora do Habeas Corpus, sua filha e seu genro perderam uma ação de alienação judicial em face de terceiros. A execução da sentença foi iniciada no ano seguinte, em 2006.
A dívida, que era de R$ 120 mil, nunca foi paga e, atualizada, já alcança R$ 920 mil. A determinação do bloqueio dos passaportes dos executados só foi feita em 2019, mais de 14 anos após o início da execução.
Em seguidas oportunidades, a executada acionou o Judiciário para tentar levantar a restrição. Apontou que tem residência nos Estados Unidos, que faz viagens constantes e que está impedida de conviver com a família. Para o Tribunal de Justiça de São Paulo, isso é um indício de que ela pode, de fato, pagar a dívida.
Ao STJ, a devedora ofereceu usar 30% dos R$ 5 mil que recebe a título de aposentadoria para abater a dívida. Se o montante parasse de ser atualizado, a mulher, que tem 71 anos, teria de pagar R$ 1,5 mil por 601 meses — ou mais de 50 anos — para quitar o que deve.
Para a ministra Nancy Andrighi, essa postura é intolerável, pois maximiza os problemas e necessidades do devedor para manter seu padrão de vida à custa dos problemas e necessidades do credor, que está há 16 anos esperando pelo pagamento.
“O oferecimento dessa insignificante quantia mensal, após mais de 16 anos de execução sem que nenhuma outra forma de pagamento fosse viabilizada, não é apenas inócua, mas até mesmo desrespeitosa e ofensiva ao credor e à dignidade do Judiciário, na medida em que são oferecidas migalhas em trocas de um passaporte para o mundo e, quiçá, para a inadimplência definitiva”, criticou a ministra.
Vai ou racha
Foi nesse contexto que a ministra Nancy Andrighi analisou a duração da medida executiva atípica. Para ela, o fato de a devedora agir para levantar a apreensão do passaporte é um indício de que a restrição está dando resultado e, logo, deve ser mantida.
O voto-vista defende que as medidas executivas atípicas sejam mantidas enquanto operarem sobre o devedor restrições capazes de incomodar e suficientes para tirá-lo da zona de conforto, especialmente em relação a seus deleites, banquetes, prazes e luxos — todos bancados por credores.
“É correto afirmar que não há formula mágica e nem deve haver tempo pré-estabelecido para duração de medida coercitiva. Ela deve perdurar pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir obrigação do que não poder realizar viagens internacionais, por exemplo”, afirmou.
É por isso que, no caso, nada justifica o desbloqueio do passaporte antes da quitação da dívida.”No caso, passamos um pouco do descaso [do devedor]: está havendo mais um deboche”, criticou o ministro Moura Ribeiro. Também formaram a maioria os ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Paulo de Tarso Sanseverino.
Ficou vencido o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, que inicialmente entendeu que a apreensão do passaporte por quase dois anos seria abusiva e desproporcional, caracterizando medida coercitiva de tempo indeterminado transmutada em penalidade ao credor.
HC 711.194 (STJ)
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2022, 10h12