100 ANOS DA MORTE
A morte de Rui Barbosa, possivelmente o mais famoso jurista brasileiro, completa 100 anos nesta quarta-feira (1º/3). O legado positivo do advogado, político e jornalista está no controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, no controle judiciário de atos abusivos de poder e na doutrina brasileira do Habeas Corpus, que culminou na construção do mandado de segurança.
1 de março de 2023
Mas Barbosa também deixou marcas negativas, como o pedantismo retórico, a hiperinflação e a queima dos arquivos da escravidão, decorrência de quando foi ministro da Economia.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), afirma que as diversas contribuições de Rui Barbosa ao Direito nacional têm em comum “a noção de que a construção da República brasileira depende de um ambiente institucional sólido”.
“É sob esse leitmotiv [motivo condutor] que Rui lança a Campanha Civilista, que se colocou em contraponto às tendências ditatoriais de seu tempo. Rui tem um receituário muito claro: o governo das leis prevalece sobre o governo dos homens. O controle judicial de constitucionalidade consiste numa tradução exata desse princípio, e não por um acaso foi uma criação de Rui Barbosa, ventilado pela primeira vez em habeas corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal em favor de cidadãos que foram vítimas dos abusos de Floriano Peixoto. Se é certo que a eleição de Hermes da Fonseca foi uma derrota para o ideal civilista, não menos exato é que a verdade é filha do tempo, e que ela estava ao lado de Rui”, avalia o ministro.
A Campanha Civilista consistiu na candidatura de Rui Barbosa a presidente em 1910. Ele decidiu entrar na disputa após o então ministro da Guerra, Hermes da Fonseca, se lançar candidato. O perfil militar de Fonseca preocupava Barbosa, que acreditava que o Estado brasileiro precisava ter menos influência das Forças Armadas. Embora Rui Barbosa tenha recebido mais votos em grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, ele foi derrotado por Fonseca, que tinha o apoio da maioria da classe política.
Cem anos após sua morte, Rui Barbosa é um exemplo para os profissionais do Direito “de que a dedicação aos estudos e a fidelidade à República são tão fortes ao ponto de conseguirem a proeza de fazer com que a História seja escrita pelos vencidos”, ressalta Gilmar.
“Hoje, não se tem dúvidas que Rui venceu. Venceu com o fortalecimento institucional do Brasil, não obstante o conturbado século XX. O caudilhismo cedeu à impessoalidade republicana. E é com muita alegria que verifico que a doutrina do controle de constitucionalidade, proposta pelo jurista baiano e, num primeiro momento, rechaçada pelo STF, teve papel de destaque nisso. O tempo mostrou também ao STF que não se pode julgar um caso sem, antes, se verificar se uma lei é conforme à Constituição. Também aqui a derrota momentânea de Ruy transformou-se, à frente, em vitória, em dado definitivo do nosso direito.”
O jurista Lenio Streck, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, ironiza que “talvez Rui Barbosa tenha impactado mais pelo que não leram dele do que pelo que leram”.
“Há alguns juristas que são referidos e não lidos. Rui é um deles. Serve muito para discursos de formatura. E lá vem o ‘aprendiz de espertinho’ recitar: ‘De tanto ver triunfar as nulidades…’. Algo como aquela citação de Cicero sobre Catilina [‘Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio?’].”
Lenio está referindo-se a trecho de discurso de Barbosa ao Senado em 1914, no qual afirmou: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
Tirando isso, o jurista afirma que, sim, Rui Barbosa impactou o Direito brasileiro com medidas concretas e com seu sarcasmo.
“Rui Barbosa propunha uma democracia juridicista, com forte papel do Supremo Tribunal Federal. Inspirou-se no judicial review dos EUA. Contramajoritarismo forte. Claro: Rui entendeu o contexto. Nem o STF de início entendeu o papel que lhe foi conferido — o que não se pode dizer que seja uma leitura equivocada. Já falei para meus alunos fazerem uma dissertação ou tese sobre o Decreto 848/1890. É um texto monumental. À frente de seu tempo. Podemos ainda hoje aprender com Rui a perseverança e a visão de juristas que olhava para além de seu tempo. Também o seu sarcasmo. Hoje a comunidade juridica não entende sarcasmos”, avalia Lenio Streck.
Para o advogado Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, autor do livro Direito e História — uma relação equivocada (Edições Humanidades), “o entusiasmo para com as causas, o destemor e o enfrentamento das adversidades no foro são lições que um advogado contemporâneo pode aprender com Rui Barbosa”.
O legado positivo do jurista está, segundo Godoy, na transposição de arranjos norte-americanos para o Brasil, a exemplo do federalismo na Constituição de 1891, e na doutrina brasileira do Habeas Corpus.
Ao ser impedido, por um delegado de polícia, de publicar um dos seus discursos críticos ao governo no jornal O Imparcial, Rui Barbosa impetrou pedido de HC no Supremo Tribunal Federal. Barbosa alegou direito à liberdade de expressão. Ele, que era senador, sustentou que os pronunciamentos eram inerentes ao mandato e que o povo precisaria saber como agem seus representantes. O jurista também defendeu que o HC deveria proteger a todos de ações violentas ou coação estatal, quando ilegais ou com abuso de poder.
O STF, no julgamento do Habeas Corpus 3.536, em 1914, aceitou por maioria a tese, assegurando a Rui Barbosa o “direito constitucional de publicar os seus discursos proferidos no Senado, pela imprensa, onde, como e quando lhe convier”.
Com a decisão, o Supremo inaugurou a doutrina brasileira do Habeas Corpus, que estende até hoje o sentido de “coação” para todas as hipóteses, independentemente de um constrangimento físico direto. O acórdão ensejou o surgimento posterior de outros institutos, como o mandado de segurança.
Mas Rui Barbosa também tem seus críticos, como Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, cita Godoy. “A linguagem barroca, o pedantismo retórico, a tragédia da política econômica do Encilhamento e a discussão sobre a queima dos arquivos da escravidão são temas que uma leitura imparcial sugere que revisitemos.”
Autor do livro Ruy Barbosa — o advogado da federação e da República, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, destaca que o jurista é responsável direto pela redação da primeira constituição republicana, a de 1891, e pela edificação das instituições democráticas.
“Foi pioneiro na defesa da competência do STF como guardião da Constituição, pela pregação do controle judiciário contra atos abusivos de poder e pela prevalência da legalidade e da igualdade como balizas a serem seguidas”, opina.
Conforme Furtado Coêlho, Barbosa “possui ensinamentos válidos e atuais, como a crença na força do direito, na defesa de causas justas ainda que impopulares, no respeito ao devido processo legal e na altivez do exercício da advocacia como fundamento de um Estado de Direito”.
Atuação como advogado
Rui Barbosa teve grande reconhecimento mundial e foi considerado pela revista Época o “maior brasileiro da história”. Porém, ele estava longe de ser unanimidade e era considerado por muitos “pretensioso, irritante, violento demais com os adversários”, contam o ministro do STF Luís Roberto Barroso, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e sua filha, a doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo Luna van Brussel Barroso. Eles são autores do artigo Rui Barbosa: o homem, o político e o jurista.
Nascido em Salvador, Barbosa ingressou na Faculdade de Direito do Recife em 1866. Após quase ser reprovado por uma nota baixa, ele se transferiu para a Faculdade de Direito de São Paulo. Lá, encantou-se pelo Direito e pelo Jornalismo.
Formado, ele voltou para Salvador e passou a advogar. Mas foi apenas quando se mudou para o Rio de Janeiro, em 1878, que “alcançou a projeção nacional que o levou a ser reconhecido como um dos maiores juristas brasileiros”, apontam os Barroso.
Essa ascensão profissional na então capital federal deveu-se a alguns motivos principais, citam os constitucionalistas.
“Em primeiro lugar, Rui havia sido o autor do projeto de Constituição apresentado pelo governo provisório, que acabou resultando na Constituição de 1891. Em segundo lugar, a Constituição de 1891 havia fortalecido o Poder Judiciário, conferindo-lhe atribuições amplas. Com o começo tumultuado da República, surgiu uma série de novos problemas jurídicos que Rui, como um dos idealizadores da Constituição, estava mais bem preparado para responder. Em terceiro lugar, em 1891, nos cargos de vice-chefe do governo provisório, ministro da Fazenda e ministro interino da Justiça, teve uma produção legislativa monumental, que abordava temas desde a publicidade imobiliária e circulação de títulos relativos ao domínio territorial, a decretos de separação entre a Igreja e o Estado, a regulamentação das sociedades anônimas e do regime hipotecário. Rui foi, ademais, um dos precursores do imposto de renda, produzindo um notável estudo sobre o tema.”
Após se afastar do governo provisório, Rui passou ao papel de oposição. Ele buscava mostrar que, na nova ordem constitucional, republicana, o Direito impunha limites ao exercício do poder. Em 1892, o presidente Floriano Peixoto mandou prender diversos de seus opositores. Uma semana depois da prisão, Rui Barbosa impetrou Habeas Corpus em favor dos 46 presos políticos ao Supremo Tribunal Federal.
“Era uma peça de 50 páginas escritas a mão, que, muito mais do que um pedido de liberdade para os presos, era um manifesto a favor do novo Estado e da legalidade constitucional. Rui destacou a importância de o Supremo Tribunal promover, quando provocado num caso concreto, a verificação de constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo. Era o começo de sua missão de tentar difundir no país, inclusive nos juízes, essa nova visão do papel do Judiciário como limite ao exercício dos poderes Executivo e Legislativo”, dizem Luís Roberto Barroso e Luna Barroso.
No entanto, o HC foi negado pelo Supremo. Em acórdão muito breve, os ministros apontaram que, como havia sido declarado o estado de sítio, a matéria seria política e não seria “da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do poder executivo ou legislativo”.
Inconformado, Rui publicou uma série de 22 artigos respondendo diretamente ao acórdão e criticando os ministros: “Não há tribunais que bastem para abrigar o Direito quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.” “Foi o primeiro advogado da história do Brasil a atacar tão direta e severamente uma decisão do STF”, mencionam os Barroso.
Outro caso importante de Barbosa foi o HC contra a captura, feita em 1893 pelo governo Floriano Peixoto, do navio Jupiter, com 48 tripulantes e passageiros, incluindo cidadãos norte-americanos e ingleses. O advogado sustentou que o STF não poderia recorrer ao argumento de que se tratava de matéria política, pois nesse caso não havia decretação de estado de sítio. O Supremo aceitou os argumentos de Barbosa e ordenou a soltura imediata dos detidos.
Além disso, Rui Barbosa moveu diversas ações cíveis buscando a reparação de danos materiais sofridos por militares e civis que foram reformados ou demitidos compulsoriamente por meio de decretos promulgados por Peixoto. Ele defendeu, pela primeira vez na história do país, a tese de supremacia da Constituição e o poder da Justiça Federal para examinar a conformidade de atos legislativos com o texto constitucional, obtendo vitórias em primeiro grau e no STF.
No governo seguinte, de Prudente de Morais, Rui Barbosa questionou o Decreto Legislativo 310, que anistiava as pessoas envolvidas nos movimentos revolucionários ocorridos no Brasil até agosto de 1895, mas previa que os militares não poderiam voltar imediatamente à ativa. Enquanto isso, não receberiam todo o seu salário. Para o advogado, atos legislativos não poderiam contrariar a Constituição. A tese foi derrotada no Supremo, mas começou a ganhar força a partir do caso.
Barbosa também foi um dos principais nomes no desenvolvimento da doutrina brasileira do Habeas Corpus, citam os Barroso. Em decorrência da teoria, a Constituição de 1934 criou o mandado de segurança, um instrumento destinado a tutelar todos os direitos líquidos e certos que reclamavam uma garantia imediata contra atos ilegais.
Vida política
Rui Barbosa ingressou na política em 1878, ao ser eleito deputado geral pelo Partido Liberal. No cargo, ele defendeu a reforma do sistema eleitoral, ampliando o direito ao voto, e do ensino.
Também foi um dos principais defensores da abolição da escravidão. Em parecer favorável ao Projeto Dantas, de 1894, Barbosa escreveu parecer narrando a realidade dos escravos e defendendo a proposta de libertação deles.
“Em 19 dias, Rui produziu um documento de 121 páginas, que viria a ser uma das mais notáveis peças de defesa abolicionista daquele tempo. Ali, demonstrou os efeitos prejudiciais da escravidão para o desenvolvimento econômico do país e, com o refinamento e a audácia que lhe eram característicos, concluiu que a abolição da escravidão era ‘uma força inelutável’ e asseverou: ‘O peso de todo o ambiente contemporâneo impõe-nos um passo franco, adiantado, enérgico, na debelação progressiva deste escândalo, que uma herança desgraçada nos obriga a dar ao mundo cristão, à liberdade, à moralidade e à ciência do nosso tempo'”, afirmam Luís Roberto Barroso e Luna Barroso.
No entanto, a abolição da escravidão também gerou críticas ao jurista. Quando era ministro da Fazenda do governo Deodoro da Fonseca, Rui Barbosa, visando proteger os recursos estatais de eventuais pedidos indenizatórios de senhores de escravos por perdas causadas pela Lei Áurea, ordenou a queima de todos os registros, papéis e livros que tratavam da escravidão. O objetivo dele foi alcançado, mas à custa do apagamento dos registros históricos da escravatura.
Com a edição da Lei Áurea, Barbosa passou a defender a adoção de uma monarquia federalista. Com o regime de Dom Pedro II na corda bamba, o advogado aderiu ao projeto republicano. No governo Deodoro da Fonseca, Barbosa, nos cargos de vice-chefe do governo provisório, ministro da Fazenda e ministro interino da Justiça, redigiu os primeiros decretos da República. Entre eles, o Decreto 119-A, que consagrava a plena liberdade de culto, dizem os Barroso.
Como ministro da Justiça, Barbosa, com o intuito de industrializar o Brasil e livrá-lo da dependência do capital estrangeiro, implementou uma série de medidas econômicas, como a abertura de créditos a novos negócios, a emissão de moeda com cobertura do Tesouro Nacional e uma política protecionista. Porém, tal pacote gerou um processo inflacionário e um aumento do custo de vida que causaram uma crise que ficou conhecida como “Encilhamento”.
“Há nomes expressivos, como Celso Furtado, que já manifestaram admiração por alguns aspectos da política econômica de Rui Barbosa. A verdade, porém, é que, ao aceitar o cargo de ministro da Fazenda, Rui Barbosa parece ter incorrido no erro contra o qual alertou os formandos da Faculdade de Direito de São Paulo, caindo na ambição de cuidar do que não sabia”, ressaltam Luís Roberto Barroso e Luna Barroso.
Rui Barbosa foi escolhido pelo governo provisório para rever o anteprojeto de Constituição elaborado por uma comissão de juristas. Após estudar o texto, o jurista recomendou alterações relevantes, inspiradas pelo modelo dos EUA. Muitas de suas sugestões foram mantidas na assembleia constituinte e, assim, o texto aprovado em junho de 1890 previa elementos como a federação, o presidencialismo e a tripartição de poderes.
Uma de suas mais importantes contribuições ao projeto, na visão dos Barroso, foi a introdução do mecanismo de jurisdição constitucional no Brasil, que conferiu ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de leis e atos do Legislativo e do Executivo.
Em 1907, Barbosa representou o Brasil na Segunda Conferência da Paz, em Haia, que havia sido convocada para discutir o desarmamento diante da ameaça de guerra. Na ocasião, o jurista ganhou o apelido de “águia de Haia” após defender a igualdade jurídica das nações.
Barbosa candidatou-se a presidente em duas ocasiões: em 1910, quando, apesar da Campanha Civilista, perdeu para Hermes da Fonseca; e em 1919, quando foi derrotado por Epitácio Pessoa.
“O político Rui Barbosa foi, assim, um humanista que viveu para objetivos que estavam além dos seus interesses imediatos e do seu proveito próprio. Apostou em bandeiras e propostas incertas e progressistas para a sua época. Não cedeu ao medo da derrota e enfrentou a resistência dos nomes mais relevantes da política. Assim, ainda que se possam criticar pontualmente algumas de suas decisões, não há dúvida de que Rui praticou política, e não politicalha. Desempenhou a arte de gerir o Estado segundo os seus princípios e as suas regras morais. Lutou pelo respeito às leis escritas e, quando essas eram contrárias à liberdade e à igualdade, lutou para que fossem modificadas. Em nenhum momento cedeu ao impulso de explorar o Estado para benefícios pessoais e, assim, sagrou-se como um dos políticos mais notáveis da história brasileira”, afirmam Luís Roberto Barroso e Luna Barroso.
*Por Sérgio Rodas – correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1 de março de 2023