Segundo o relator, ministro Dias Toffoli, a publicação em jornal de grande circulação assegura o direito à informação.

03/07/2024

Fachada do edifício-sede do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) validou norma que dispensa as sociedades anônimas de publicarem atos societários e demonstrações financeiras em diário oficial e exige a divulgação das informações em jornal de grande circulação, em formato físico e eletrônico. A decisão unânime foi tomada na sessão virtual encerrada em 28/6, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7194.

Na ação, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) questionava dispositivo da Lei 13.818/2019 que alterou a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976). A redação anterior obrigava as empresas a publicar seus atos em diário oficial da União, do estado ou do Distrito Federal e em outro jornal de grande circulação no local de sua sede. Após a alteração normativa, foi mantida apenas a segunda obrigação, com a divulgação das informações de forma resumida no jornal físico e, simultaneamente, da íntegra dos documentos na página do veículo na internet.

O relator, ministro Dias Toffoli, ressaltou que as inovações tecnológicas afetam profundamente a forma de acesso à informação, e é razoável que uma lei de 1976 seja atualizada para acompanhar essas transformações. Segundo Toffoli, a divulgação da íntegra dos atos societários na página da internet de jornais de grande circulação atinge grande número de pessoas interessadas. Além disso, foi mantida a obrigatoriedade de divulgação na mídia impressa, o que contempla as pessoas que não costumam ou não conseguem usar meios eletrônicos de acesso à informação.

EC/AD//CF

Fonte: STF

Pena fixada em cinco anos de reclusão.

03 de Julho de 2024

A 7ª Vara Criminal da Capital condenou estudante de medicina que desviou cerca de R$ 927 mil arrecadados por dezenas de colegas de faculdade para a realização de evento de formatura. A pena pelo crime de estelionato, praticado de forma continuada por oito vezes, foi fixada em cinco anos de reclusão, em regime semiaberto. A sentença também determinou o pagamento de indenização às vítimas, no mesmo valor do prejuízo causado. 

Segundo os autos, a acusada aproveitou-se do posto de presidente da comissão de formatura para exigir da empresa organizadora da festa que os pagamentos dos alunos fossem transferidos para conta bancária de sua titularidade, omitindo o fato dos colegas. O conjunto probatório apontou que a ré usou o dinheiro em proveito próprio – na compra de celular e relógio, aluguel de veículo, custeio de estadia e investimentos financeiros.

Ao fixar a pena, o juiz Paulo Eduardo Balbone Costa reiterou a acentuada reprovabilidade da conduta, que gerou prejuízo de quase R$ 1 milhão. “A ré se prevaleceu de sua condição de presidente da comissão de formatura para engendrar um plano destinado a se apossar do produto arrecadado ao longo de meses, com a contribuição de dezenas de colegas, a fim de obter lucro para si com a aplicação especulativa daquele capital. Traiu a confiança de seus pares, desviando recursos que pertenciam aos colegas de turma (o que revela maior opróbio do que a prática de estelionato contra vítima a quem não se conhece), quando as vítimas não atuavam movidas pela própria cupidez”, apontou o magistrado. 

Cabe recurso da decisão.

Fonte: TJSP

Bioma está cada vez mais seco, o que o torna mais vulnerável

03/07/2024

O Pantanal enfrenta desde 2019 o período mais seco das últimas quatro décadas e a tendência é que 2024 tenha a pior crise hídrica já observada no bioma, de acordo com um estudo inédito lançado nesta quarta-feira (3). Os resultados apontam que, nos primeiros quatro meses do ano, quando deveria ocorrer o ápice das inundações, a média de área coberta por água foi menor do que a do período de seca do ano passado.

O estudo foi encomendado pelo WWF-Brasil e realizado pela empresa especializada ArcPlan, com financiamento do WWF-Japão. O diferencial em relação a outras análises baseadas em dados de satélite é o uso de dados do satélite Planet.

“Graças à alta sensibilidade do sensor do satélite Planet, pudemos mapear a área que é coberta pela água quando os rios transbordam. Ao analisar os dados, observamos que o pulso de cheias não aconteceu em 2024. Mesmo nos meses em que é esperado esse transbordamento, tão importante para a manutenção do sistema pantaneiro, ele não ocorreu”, ressalta Helga Correa, especialista em conservação do WWF-Brasil que é também uma das autoras do estudo.

“De forma geral, considera-se que há uma seca quando o nível do Rio Paraguai está abaixo de 4 metros. Em 2024, essa medida não passou de 1 metro. O nível do Rio Paraguai nos cinco primeiros meses deste ano esteve, em média, 68% abaixo da média esperada para o período”, afirma Helga. “O que nos preocupa é que, de agora em diante, o Pantanal tende a secar ainda mais até outubro. Nesse cenário, é preciso reforçar todos os alertas para a necessidade urgente de medidas de prevenção e adaptação à seca e para a possibilidade de grandes incêndios.”

Na Bacia do Alto Rio Paraguai, onde se situa o Pantanal, a estação chuvosa ocorre entre os meses de outubro e abril, e a estação seca, entre maio e setembro. De acordo com o estudo, entre janeiro e abril de 2024, a média da área coberta por água foi de 400 mil hectares, em pleno período de cheias, abaixo da média de 440 mil hectares registrada na estação seca de 2023.

De acordo com os autores do estudo, os resultados apontam uma realidade preocupante: o Pantanal está cada vez mais seco, o que o torna mais vulnerável, aumentando as ameaças à sua biodiversidade, aos seus recursos naturais e ao modo de vida da população pantaneira. A sucessão de anos com poucas cheias e secas extremas poderá mudar permanentemente o ecossistema do Pantanal, com consequências drásticas para a riqueza e a abundância de espécies de fauna e flora, com grandes impactos também na economia local, que depende da navegabilidade dos rios e da diversidade de fauna.

“O Pantanal é uma das áreas úmidas mais biodiversas do mundo ainda preservadas. É um patrimônio que precisamos conservar, por sua importância para o modo de vida das pessoas e para a manutenção da biodiversidade”, ressalta Helga.

Além dos eventos climáticos que agravam a seca, a redução da disponibilidade de água no Pantanal tem relação com ações humanas que degradam o bioma, como a construção de barragens e estradas, o desmatamento e as queimadas, explica Helga.

De acordo com a especialista em conservação do WWF-Brasil, diversos estudos já indicam que o acúmulo desses processos degradação, acentuados pelas mudanças climáticas, pode levar o Pantanal a se aproximar de um ponto de não retorno – isto é, perder sua capacidade de recuperação natural, com redução abrupta de espécies a partir de um certo percentual de destruição.

Outra preocupação é que as sucessivas secas extremas e as queimadas por elas potencializadas afetam a qualidade da água devido à entrada de cinzas no sistema hídrico, causando mortalidade de peixes e retirando o acesso à água das comunidades. “É preciso agir de forma urgente e mapear onde estão as populações tradicionais e pequenas comunidades que ficam vulneráveis à seca e à degradação da qualidade da água”, diz ela.

A nota técnica traz uma série de recomendações como mapear as ameaças que causam maiores impactos aos corpos hídricos do Pantanal, considerando principalmente a dinâmica na região de cabeceiras; fortalecer e ampliar políticas públicas para frear o desmatamento; restaurar áreas de Proteção Permanente (APPs) nas cabeceiras, a fim de melhorar a infiltração da água e diminuir a erosão do solo e o assoreamento dos rios, aumentando a qualidade e a quantidade de água tanto no planalto quanto na planície, e apoiar a valorização de comunidades, de proprietários e do setor produtivo que desenvolvem boas práticas e dão escala a ações produtivas sustentáveis.

*Por Agência Brasil – Rio de Janeiro

Renan Pieri falou sobre as razões da alta da moeda americana

03/07/2024

A manutenção dos juros altos e a valorização dos títulos públicos nos Estados Unidos estão entre as principais razões para a alta do dólar no Brasil. A avaliação é do professor de finanças da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), Renan Pieri.

“A alta do dólar tem relação com a valorização dos títulos públicos americanos, muito no cenário de manutenção de juros altos nos Estados Unidos, com a expectativa de um momento mais difícil na eleição [presidencial], também por conta do mercado aquecido lá. Os juros mais altos, essa rentabilidade maior dos títulos americanos, atrai capital para lá e tira dinheiro do Brasil”, disse.

A cotação do dólar comercial fechou nesta terça-feira (2) a R$ 5,665, com pequena alta de 0,22%. A moeda norte-americana continua no maior nível desde 10 de janeiro de 2022, quando fechou a R$ 5,67. O dólar acumula alta de 16,8% em 2024.

Questões internas

Parte da alta do dólar deve-se a questões internas, como a expectativa do mercado financeiro sobre o anúncio de medidas de corte de gastos para o orçamento de 2025 e do contingenciamento de verbas públicas para o orçamento deste ano.

“A questão fiscal do Brasil faz com que o mercado comece a acreditar que o governo vai ter muita dificuldade de cumprir o novo arcabouço fiscal, o método de superávit primário, e portanto passa a cobrar um prêmio maior para manter os investimentos aqui”, ressalta Pieri.

De acordo com ele, se esse “prêmio” não se traduzir em juros mais altos, haverá saída de capital do país. “Saída de capital do país significa que os investidores acreditam menos no futuro do Brasil no longo prazo”.

Jogo político

Segundo a professora de economia política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Malta, a elevação do preço do dólar se relaciona, entre outras coisas, com a queda de braço que os grandes bancos e instituições financeiras estão fazendo para influenciar a decisão sobre o próximo presidente do Banco Central.

“O que está havendo é um jogo político pré-eleitoral em um contexto de avanço da extrema-direita no mundo. Neste jogo, o setor financeiro pretende obter uma parte ainda maior das rendas do país e ampliar seu poder e riqueza”, destacou.

Ela acrescenta que, para a estrutura econômica brasileira, a desvalorização do real melhora a situação do país “em termos de exportações, juros mais baixos diminuem os custos internos da dívida pública e estimulam a tomada do crédito produtivo”.

*Por Bruno Bocchini – Repórter da Agência Brasil – São Paulo

Fonte: Agência Brasil

Murray Advogados

A 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve, em parte, decisão da 1ª Vara Criminal de Tatuí, proferida pela juíza Mariana Teixeira Salviano da Rocha, que condenou homem por maus tratos ao cachorro. A pena foi redimensionada para dois anos de reclusão, em regime inicial aberto, substituída por duas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de um salário mínimo em favor de ONG que cuidou do animal após o resgate.

02/07/2024

Prestação pecuniária destinada à ONG que cuidou do animal.

Segundo os autos, o cachorro foi atacado por outro animal e ficou debilitado. Como o dono não tinha condições de arcar com o tratamento, o levou até a margem de uma rodovia e o enterrou apenas com a cabeça para fora. Parte da ação foi vista por uma testemunha, que resgatou o cão e o levou para receber atendimento veterinário. 

Para o relator do recurso, desembargador Ruy Alberto Leme Cavalheiro, a alegação de que o réu acreditava que o animal estivesse morto não merece acolhimento. “O contexto deixa indúbio que o acusado realmente enterrou o cachorro ali, deixando-o submerso em terra, abandonando-o à morte, sem o tratamento que necessitava. Logo, o crime de maus tratos se configurou por tal conduta: enterrar um animal ainda vivo”, afirmou. O colegiado reduziu o montante a ser pago em prestação pecuniária em razão da condição financeira do acusado.

Completaram o julgamento os desembargadores Gilberto Cruz e Marcia Monassi. A decisão foi unânime.

Apelação nº 1505765-14.2021.8.26.0624

Fonte: Comunicação Social TJSP – imprensatj@tjsp.jus.br

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu afetar os Recursos Especiais 2.097.166 e 2.109.815, de relatoria do ministro Herman Benjamin, para julgamento sob o rito dos repetitivos.  

02/07/2024

A questão submetida a julgamento, cadastrada como Tema 1.265 na base de dados do STJ, é definir se os honorários advocatícios devem ser fixados com base no valor da execução (artigo 85, parágrafos 2º e 3º, do Código de Processo Civil – CPC) ou por equidade (artigo 85, parágrafo 8º, do CPC), quando acolhida a exceção de pré-executividade e reconhecida a ilegitimidade de um dos coexecutados para compor o polo passivo da execução fiscal.

O colegiado determinou a suspensão dos recursos especiais e dos agravos em recurso especial que tratem da matéria, na segunda instância e no STJ.

Questão tem impacto jurídico e financeiro nas execuções fiscais

No REsp 2.097.166, representativo da controvérsia, o Estado do Paraná defende a fixação dos honorários por equidade, pois houve reconhecimento da ilegitimidade passiva de um sócio e ele foi excluído da execução fiscal; desse modo, não houve a exclusão do crédito tributário, inexistindo qualquer debate com conteúdo econômico para justificar a fixação dos honorários com base no valor da execução.

“A questão tem relevante impacto jurídico e financeiro”, disse o relator, acrescentando que “a solução irá balizar os critérios para a fixação de honorários advocatícios em inúmeras execuções fiscais semelhantes, nas quais a ilegitimidade da pessoa incluída no polo passivo da demanda seja reconhecida”.

O ministro observou que a discussão não se resolve apenas com a aplicação das teses jurídicas fixadas no Tema 1.076, uma vez que aquele julgamento não tratou da presente controvérsia, que discute se devem ser fixados honorários com base no valor da execução ou por equidade, caso a exceção de pré-executividade seja acolhida apenas para excluir o sócio do polo passivo.

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica

O CPC regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como conhecer a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Leia o acórdão de afetação no REsp 2.097.166.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 2097166REsp 2109815

Fonte: STJ

O Brasil vem discutindo a criação de uma lei geral regulamentadora da inteligência artificial sem ter um diagnóstico satisfatório dos impactos dessa tecnologia no país. Não há um levantamento oficial sobre questões como os setores mais beneficiados, os ganhos proporcionados, os prejuízos e as ameaças. Sem isso, faz mais sentido alterar leis já existentes ou editar novas normas com foco em temas específicos.

2 de julho de 2024, 8h52

O advogado Ciro Torres Freitas (Spacca)

É o que diz o advogado Ciro Torres Freitas, especializado no tema, ele é crítico da ideia de estabelecer uma lei geral da IA no Brasil no cenário atual — o que é atualmente discutido no Congresso, por meio do Projeto de Lei 2.338/2023.

Para ele, a falta de um diagnóstico gera o risco de que a futura lei “seja insuficiente para mitigar os efeitos indesejados da IA” — como a discriminação algorítmica — e acabe “inibindo os potenciais benefícios dessa tecnologia” ou desencorajando o seu uso.

Segundo Freitas, conhecer os impactos causados pela IA é “algo fundamental para se definir prioridades, identificar lacunas na legislação atual e, a partir disso, delimitar o escopo de novas normas a serem criadas”. Como esse diagnóstico ainda não foi feito no país, ele defende que a regulamentação aconteça “remediando aquelas situações mais prementes e evidentes de forma pontual”.

“A lei não pode ser uma solução à procura de um problema. A lei deve vir para resolver situações concretas”, assinala o advogado. Na sua visão, uma lei geral da IA não seria um problema “se estivessem claros os impactos dessa tecnologia na nossa sociedade”.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Freitas ressaltou que é incomum no Brasil a criação de leis gerais sobre tecnologias. O caminho mais adotado é a regulamentação do seu uso “em âmbitos específicos”.

O advogado ainda explicou que alguns problemas causados pela IA já possuem soluções dentro da legislação atual — por exemplo, questões de responsabilidade civil já são resolvidas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e pelo Código Civil.

Por outro lado, ele acredita que algumas leis já existentes poderiam ser “ajustadas pontualmente para endereçar situações envolvendo IA”. Os problemas relacionados a obras protegidas usadas em treinamentos de sistemas de IA, por exemplo, poderiam ser corrigidos com alterações na Lei de Direitos Autorais.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Está claro, no Brasil, quais problemas gerados pela IA precisam ser solucionados pela legislação?
Ciro Torres Freitas — Não há um diagnóstico satisfatório dos impactos da IA no nosso país. E é curioso porque o governo brasileiro lançou, em 2021, a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial, que serviria exatamente para nortear as ações do Estado em prol do desenvolvimento de uma série de ações relacionadas à IA.

Nesse documento há um capítulo exatamente sobre diagnóstico do uso da IA. Mas a verdade é que ali há pouquíssima coisa a respeito dos impactos concretos da IA na nossa sociedade. Em termos de problemas constatados, formas de prevenção e riscos versus benefícios, esse documento não traz praticamente nada.

Então, não há hoje, no Brasil, um levantamento oficial sobre questões como: quais são os setores que mais se beneficiam da IA; quais são os ganhos proporcionados; quais são os prejuízos; quais são as ameaças; etc.

Conhecer esses impactos é algo fundamental para se definir prioridades, identificar lacunas na legislação atual e, a partir disso, delimitar o escopo de novas normas a serem criadas.

É claro que alguns desses impactos podem ser comuns ao que se verifica em outras jurisdições, de outros países. Certas questões envolvendo IA são universais. Mas é bastante provável que também existam especificidades locais, que precisam ser refletidas em uma lei do nosso país. E a única forma de cobrirmos isso é por meio de um diagnóstico que ainda não existe.

ConJur — Quais são os principais problemas de discutir uma lei geral da IA sem um diagnóstico ou panorama sobre os problemas da tecnologia e as soluções pretendidas?
Ciro Torres Freitas — O principal problema é que o legislador acaba ficando exposto ao risco de criar uma lei que seja insuficiente para mitigar os efeitos indesejados da IA, e que também pode acabar involuntariamente inibindo os potenciais benefícios dessa tecnologia.

Quando uma lei não é concebida levando em conta as diferenças significativas sob os pontos de vista econômico e social existentes na população brasileira, ela pode não ser suficientemente adequada em relação à necessidade de mitigar, por exemplo, os vieses discriminatórios de sistemas de IA — a discriminação algorítmica.

Por outro lado, uma lei que não traga as ressalvas apropriadas para a nossa realidade local pode, por exemplo, desencorajar o uso da IA em procedimentos médicos, na medida em que venha a sujeitar o operador a um regime de responsabilidade mais severo do que o geral, mesmo que o método por ele utilizado seja comprovadamente melhor e gere resultados mais seguros e mais positivos para os pacientes em comparação a outras tecnologias.

Então, podem existir falhas legislativas em ambas as direções, se a lei não refletir a realidade da nossa sociedade. A lei não pode ser uma solução à procura de um problema. A lei deve vir para resolver situações concretas.

ConJur — Quem deve fazer esse diagnóstico?
Ciro Torres Freitas  Na medida em que o governo lançou uma Estratégia Brasileira de IA e se propôs a se valer desse documento para guiar suas ações em prol do desenvolvimento dessa tecnologia, esse diagnóstico deveria ser feito no contexto dessa iniciativa. Caberia, sim, ao governo pelo menos tomar a iniciativa de promover esse diagnóstico.

Lógico que o governo não precisa fazer isso sozinho. Ele pode se valer de parcerias com entidades de pesquisa, universidades e a própria sociedade civil. Não é uma tarefa que deve ser atribuída única e exclusivamente ao Estado. Mas cabe ao governo, na medida em que se propõe a criar normas de escopo tão amplo a respeito de algo tão relevante, ao menos liderar essa iniciativa de fazer um diagnóstico adequado sobre os impactos da IA.

Instituições com capacidade e interessadas em contribuir com o governo nessa caminhada não faltam na sociedade brasileira. A questão é que avançamos muito mais na elaboração da lei do que nesse passo que idealmente deveria ser dado antes, de fazer o diagnóstico da situação.

ConJur — Faz sentido criar uma lei geral da IA no Brasil hoje?
Ciro Torres Freitas — A criação de leis gerais sobre IA vem se consolidando como tendência no contexto internacional, até como ilustram os exemplos recentes da União Europeia, do estado de Colorado, nos Estados Unidos, e de outros países que vêm seguindo esse caminho.

Mas a verdade é que, antes disso, muitos países já continham previsões legais específicas, ou mesmo leis com escopo mais reduzido sobre IA. A Espanha é um exemplo: lá, em determinada lei, há uma previsão de que decisões tomadas pelo Estado com o uso de IA precisam ter alguns critérios de transparência e accountability.

A China é um outro exemplo, pois tem algumas leis sobre IA em contextos específicos, como criação de conteúdo conhecido como deep synthesis (o popular deepfake). São mais de 30 países hoje que já têm leis federais em alguma medida tratando de IA.

Ter uma lei geral no Brasil não seria um problema se estivessem claros os impactos dessa tecnologia na nossa sociedade e o legislador pudesse endereçar adequadamente, na norma, os efeitos adversos e os benefícios da tecnologia.

Sem esse diagnóstico, faz mais sentido iniciar a regulamentação remediando aquelas situações mais prementes e evidentes de forma pontual — seja pela alteração de leis já existentes, seja pela edição de novas normas focando em temas específicos. Mas o legislador brasileiro já se decidiu pelo caminho de uma lei geral. Essa decisão já está tomada e dificilmente será revertida.

ConJur  A criação de leis gerais costuma ser um bom caminho na área de tecnologia?
Ciro Torres Freitas — Na tradição legislativa brasileira, não há uma constante de criação de leis gerais sobre tecnologias. Normalmente, as grandes questões jurídicas trazidas com novas tecnologias são endereçadas pontualmente em outras normas que já existem.

O laser, por exemplo, é uma tecnologia amplamente utilizada, desde finalidades básicas de entretenimento, como iluminação de ambientes ou canetas usadas para orientar apresentações, até aplicações muito sofisticadas no âmbito da Medicina e da Engenharia Aeroespacial. É uma tecnologia que traz vários benefícios e também sérios riscos. E nunca cogitamos, na história do Brasil, criar uma lei geral sobre essa tecnologia.

Existem leis específicas que regulamentam o uso dessa tecnologia em âmbitos específicos. E assim é com tantas outras tecnologias que foram surgindo ao longo dos anos. Não é da cultura brasileira criar leis gerais sobre tecnologias. Isso é algo bastante incomum.

Então, isso também é um motivo do questionamento do porquê de termos tanto apetite em sair do zero — da situação de não ter lei nenhuma sobre IA — para um passo inicial de ter uma lei geral com aplicação ampla e escopo extremamente abrangente.

Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e o Marco Civil da Internet (MCI) são leis relacionadas à área da tecnologia, mas não são leis gerais sobre uma tecnologia. A LGPD versa sobre o uso de dados pessoais, não necessariamente sobre um tipo de tecnologia. Ela tem, sim, um escopo superamplo e transversal, mas não é uma lei que versa sobre tecnologia.

O MCI não é uma lei tão ampla. Ele versa sobre alguns aspectos do uso da internet. E, na minha concepção, a internet não é propriamente uma tecnologia. A internet está mais próxima de ser um ambiente formado pelo uso de algumas tecnologias, alguns equipamentos e pelo componente humano. Todos esses elementos compõem o que hoje conhecemos como internet, um conjunto de redes. Mas não pode ser equiparada a uma tecnologia como a IA.

ConJur — A experiência europeia deve ser levada em conta no debate sobre regulamentação da IA no Brasil?
Ciro Torres Freitas — O modelo regulatório europeu, orientado principalmente para os direitos humanos, atualmente tem um protagonismo sobre muitos países. É algo conhecido como Efeito Bruxelas: as normas feitas na União Europeia acabam se replicando em outros países. Isso se aplica, inclusive, ao Brasil. A LGPD é um exemplo muito claro disso — é bastante inspirada no regulamento europeu de proteção de dados.

Não devemos importar integralmente o modelo europeu. Até porque, em matéria de IA, um modelo muito orientado para a proteção dos direitos das pessoas afetadas pelos sistemas pode acabar inibindo excessivamente os benefícios e os potenciais da tecnologia, que não são poucos.

A IA é usada hoje na área da Medicina, da acessibilidade, da educação. São benefícios incontáveis e que, talvez, sem o uso dessas tecnologias, a civilização demorasse muitos anos para atingir. Importar totalmente o modelo europeu não é o ideal.

Agora, se partirmos da premissa de que queremos e teremos no Brasil uma lei geral de IA, o regulamento europeu é uma referência que não pode ser ignorada — idealmente com as ressalvas e os ajustes necessários para adequá-lo à realidade brasileira. Existem aspectos e definições, como a abordagem baseada em risco, que podem ser aproveitados.

O melhor seria, na minha visão, se pudéssemos testemunhar a efetiva aplicação do regulamento europeu de IA antes de termos uma lei geral em vigor no Brasil. Isso nos permitiria avaliar melhor o que seguir e o que fazer diferente, sem prejuízo de, nesse meio-tempo, eventualmente editarmos normas mais específicas ou atualizarmos leis já em vigor para endereçar os pontos mais prementes.

ConJur  As mudanças constantes dos sistemas de IA causam o risco de uma eventual regulamentação ficar obsoleta em pouco tempo?
Ciro Torres Freitas — Esse é um dos riscos inerentes à regulamentação de novas tecnologias. E ficou muito evidente isso durante o trâmite legislativo do regulamento europeu de IA. Foram feitas inúmeras mudanças no texto ao longo do processo, até o último momento. Conforme a tecnologia ia se tornando mais avançada, o legislador da União Europeia fazia uma alteração no texto para refletir e compreender isso na iniciativa legislativa.

Como as aplicações e as finalidades de uso dos sistemas de IA são muito amplas, virtualmente ilimitadas, o legislador precisa ter um cuidado ao criar as normas sobre essa tecnologia. Esse cuidado pode se dar, por exemplo, por meio da criação de normas mais principiológicas ou por meio de previsões legais que guardem alguma abertura para a futura atualização de alguns aspectos via regulamentação. Existem mecanismos para o legislador endereçar esse aspecto da IA ao editar uma norma.

Um professor chamado David Collingridge publicou em 1980 o livro The Social Control of Technology, um marco na regulação de novas tecnologias. Nessa obra, ele diz que é mais fácil regular com sucesso uma tecnologia quando ela ainda é nova. Só que, provavelmente, essa tecnologia ainda não mostrou todas as suas consequências indesejáveis. Então, a lei não vai conseguir endereçar esses pontos.

A alternativa seria aguardar e ver a tecnologia mostrar essas consequências indesejáveis. Mas, ao aguardar, é possível que essa tecnologia se torne tão consolidada e impregnada na sociedade que ficaria mais difícil fazer a regulação, por conta das resistências sociais.

Esse dilema ilustra bem a complexidade de regular novas tecnologias. O que se propõe aos legisladores confrontados com essa situação é que eles fujam de situações extremas. O ideal é buscar sempre uma atuação legislativa mais equilibrada.

ConJur  Quais problemas causados pela IA já possuem soluções dentro da legislação atual?
Ciro Torres Freitas — Embora o Brasil não tenha, pelo menos no âmbito federal, leis efetivamente sobre IA, possui várias normas que se já aplicam a diferentes circunstâncias do uso dessa tecnologia e que, eventualmente, podem ser atualizadas para endereçá-lo de forma mais adequada.

No contexto de uma relação de consumo, já existe no CDC a previsão de que os fornecedores de produtos ou serviços estão sujeitos a uma responsabilidade que não depende de culpa. Eles estão sujeitos a sanções administrativas em caso de defeitos e são demandados a fornecer informações adequadas sobre os riscos gerados pelos produtos e serviços. Mesmo nas relações que não sejam de consumo, há normas no Código Civil a respeito da responsabilidade das partes contratantes.

A última versão do PL 2.338/2023, quando trata da responsabilidade civil, prevê que, no âmbito das relações de consumo, as hipóteses de responsabilização dos agentes de IA sujeitam-se ao regime do CDC, enquanto as demais hipóteses ficam sujeitas ao regime do Código Civil. Então, o texto atual não introduz praticamente nada de novo sobre responsabilidade civil. Ele simplesmente faz referência a normas que já existem a respeito do tema.

Se pensarmos em um sistema de IA que utilize dados pessoais — seja no seu treinamento, seja no seu funcionamento —, o responsável por esse sistema precisa seguir a LGPD, uma norma que estabelece as condições para o uso de dados pessoais, uma série de obrigações para quem faz esse uso, vários direitos aos titulares e sanções bastante significativas para hipóteses de descumprimento das suas previsões. Isso já está garantido no ordenamento jurídico brasileiro.

Existem também várias exposições relevantes da Constituição. Ela resguarda direitos fundamentais que precisam ser observados em quaisquer relações humanas, como a inviolabilidade da vida privada, da honra, a tutela da saúde e a dignidade da pessoa humana. São direitos que protegem ou podem proteger aqueles que estiverem expostos a sistemas de IA.

Claro, essas normas podem não ser suficientes para reger todas as situações envolvendo a IA. Mas, sem dúvida, já conferem algum grau de proteção, que é importante.

ConJur  Quais problemas pontuais causados pela IA podem ser corrigidos com normas já existentes?
Ciro Torres Freitas — Quanto a leis que podem ser ajustadas pontualmente para endereçar situações envolvendo IA, há o exemplo da Lei de Direitos Autorais. Qualquer modalidade de uso de obras autorais protegidas depende de autorização prévia do criador. A lei traz algumas exceções a essa regra, mas elas não compreendem, por exemplo, o uso das obras protegidas para fins de treinamento de sistemas de IA.

Isso é algo que pode ser alterado na própria Lei de Direitos Autorais, seja para autorizar esse uso ou para estabelecer as condições para que ele venha a ocorrer. A solução no âmbito da própria lei é mais apropriada do que transferir essa discussão para uma outra norma.

O Tribunal Superior Eleitoral, por meio de resoluções, também criou algumas regras específicas relacionadas ao uso de IA no contexto de campanha eleitoral. Em vez de aguardar ou promover uma lei geral que abordasse o uso de IA também durante o período ou para fins eleitorais, o TSE editou uma regulamentação sobre esse aspecto, sem a necessidade de criar uma lei geral.

ConJur  Para além da falha conceitual, quais são os principais problemas do texto do PL 2.338/2023?
Ciro Torres Freitas — A iniciativa de legislar sobre IA é positiva, independentemente do formato da lei ou do ritmo do trâmite legislativo. Tem muita gente séria e comprometida com essa pauta, e isso é algo elogiável. O Brasil não pode ficar fora dessa discussão a respeito da regulamentação da IA, que já é uma realidade no nosso cotidiano. As críticas devem ser sempre construtivas e propositivas.

A última versão do PL 2.338/2023 diz que não constitui ofensa aos direitos autorais o uso automatizado de conteúdo protegido para o desenvolvimento de sistemas de IA, mas apenas por organizações e instituições de pesquisa, jornalismo, museus, arquivos, bibliotecas e educacionais, desde que sem fins comerciais, além de outras condições e critérios ali previstos. Para as demais hipóteses, o texto prevê a criação de um ambiente regulatório experimental, chamado de sandbox, para dispor sobre a remuneração dos titulares dos direitos autorais por parte dos agentes de IA.

Na minha visão, o ideal seria resolver desde já essa situação — seja por meio da lei geral ou, idealmente, pela via de atualização da Lei de Direitos Autorais. Não resolve o nosso problema proibir empresas que não sejam essas instituições mencionadas e que tenham finalidade comercial de utilizar obras protegidas no treinamento de sistemas de IA, até que se venha a resolver no futuro uma forma de remuneração dos titulares desses direitos.

Isso coloca o Brasil em uma situação sensível. Enquanto, em outros países, obras protegidas — como matérias jornalísticas, fotografias, pinturas, obras de arte e músicas — já estão sendo utilizadas no treinamento desses sistemas, todo esse material em língua portuguesa não poderia, de forma nenhuma, ser utilizado por empresas com fins comerciais, até que se venha a definir, depois de uma experiência em um ambiente regulatório experimental, como a remuneração poderia ocorrer.

Isso pode acabar colocando o Brasil em uma situação marginal em relação à IA, principalmente generativa, na medida em que o conteúdo redigido em língua portuguesa teria uma restrição muito grande à utilização para o treinamento dos sistemas. Isso compromete claramente o resultado gerado por esses sistemas.

Enquanto outros países seguiriam utilizando plenamente essas ferramentas, o Brasil teria esse óbice legislativo para isso. Não estou aqui defendendo que o uso dessas obras protegidas seja feito de forma indiscriminada, sem qualquer condição ou de remuneração aos titulares. Mas precisam ser resolvidas desde já, na nossa legislação, as condições para que esse uso possa ser feito.

O texto atual do PL 2.338/2023 não faz isso. Ele relega a um momento futuro e incerto a solução para essa questão. Esse ponto merece aprimoramento.

Multa diária em caso de descumprimento será de R$ 50 mil

02/07/2024

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) decidiu suspender o uso de dados pessoais publicados em plataformas da empresa Meta para o treinamento de sistemas de inteligência artificial (IA). 

Uma medida cautelar foi aprovada pelo conselho decisório da ANPD. O despacho com a decisão foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) desta terça-feira (2). Foi estipulada multa diária de R$ 50 mil em caso de descumprimento. 

Na última quarta-feira (26), entrou em vigor uma nova política de privacidade da Meta, abrangendo plataformas de rede social como Instagram, Facebook e Messenger. O documento autoriza a utilização de conteúdos compartilhados pelos usuários e disponíveis publicamente para o treinamento de IA generativa. 

“Tal tratamento pode impactar número substancial de pessoas, já que, no Brasil, somente o Facebook possui cerca de 102 milhões de usuários ativos”, disse a ANPD em nota. Para justificar a medida, o órgão destacou a utilização de dados pessoas de crianças e adolescentes para treinar sistemas de IA da Meta, informações que estão sujeitas a proteção especial da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). 

A agência informou que decidiu de ofício – ou seja, por inciativa própria – fiscalizar a aplicação da nova política da Meta, e disse ter constatado “riscos de dano grave e de difícil reparação aos usuários”, diante do que considerou ser indício de violação LGPD. 

“A ANPD avaliou que a empresa não forneceu informações adequadas e necessárias para que os titulares tivessem ciência sobre as possíveis consequências do tratamento de seus dados pessoais para o desenvolvimento de modelos de IA generativa”, diz a nota divulgada pelo órgão. 

A agência mencionou ainda “obstáculos excessivos e não justificados” para que o usuário possa passar a se opor a esse tipo de tratamento de seus dados pessoais. De acordo com a ANPD, os usuários das plataformas da Meta compartilharam dados pessoais com a expectativa de se relacionar com “amigos, comunidade próxima e empresas de interesse”, sem considerar que as informações pudessem ser usadas no treinamento de IA. 

A ANPD é um órgão criado em 2020, ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, cujo conselho é composto por cinco diretores indicados pelo presidente e aprovados pelo Senado, com mandato de quatro anos. Os critérios são reputação ilibada, nível superior e elevado conceito no campo de especialidade. 

Outro lado 

Em posicionamento enviado por e-mail, a Meta disse estar “desapontada com a decisão da ANPD”. A empresa acrescentou que não é a única a promover treinamento de IA com informações coletadas pelos serviços prestados. “Somos mais transparentes do que muitos participantes nessa indústria que tem usado conteúdos públicos para treinar seus modelos e produtos”, diz o texto enviado. 

“Nossa abordagem cumpre com as leis de privacidade e regulações no Brasil, e continuaremos a trabalhar com a ANPD para endereçar suas dúvidas. Isso é um retrocesso para a inovação e a competividade no desenvolvimento de IA e atrasa a chegada de benefícios da IA para as pessoas no Brasil”, afirmou a empresa. 

* Por Felipe Pontes – Repórter da Agência Brasil – Brasília

Fonte: Agência Brasil

A volta do desequilíbrio na chamada regra de ouro do Orçamento, que impede a emissão de dívida para bancar despesas como salários e benefícios, vai ampliar o poder de barganha do Congresso Nacional nas negociações com o Executivo a partir de 2025.

02.07.2024

A projeção inicial do governo indicava uma insuficiência de R$ 52,7 bilhões no ano que vem, mas o valor pode ser até maior no momento do envio da proposta de Orçamento, em 31 de agosto. Em 2026, ano eleitoral, o rombo pode chegar a R$ 293,3 bilhões.

A lógica da regra de ouro, prevista na Constituição, é a de que nenhum governo pode se endividar para pagar despesas que não sejam investimentos (que dão retorno a longo prazo e justificam a contratação de uma operação de crédito) ou a rolagem da própria dívida pública.

Em situação de desequilíbrio, o texto prevê uma válvula de escape. Se a União precisar tomar emprestado para pagar despesas correntes (aquelas do dia a dia, como salários e benefícios), é preciso obter aval da maioria absoluta do Congresso –257 deputados e 41 senadores.

O problema central está no esgotamento dos expedientes usados pelo Executivo nos últimos anos para cobrir sozinho o buraco e evitar a necessidade de recorrer ao Legislativo para obter uma autorização especial e destravar as despesas.

Desde 2021, o Executivo conseguiu recorrer a antecipações de pagamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), repasse de lucros do Banco Central e resgate de superávits financeiros de fundos. Essas receitas financeiras ajudaram a compensar a arrecadação insuficiente para honrar despesas correntes.

Neste ano, as reservas de recursos ainda serão capazes de suprir as necessidades do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O Orçamento foi enviado com R$ 200,3 bilhões em despesas condicionadas, mas a previsão atual é uma margem positiva de R$ 25 bilhões na regra de ouro.

De 2025 em diante, porém, o diagnóstico é de que a fonte de receitas secou.

A demora em alcançar um superávit suficiente para estabilizar a dívida pública, a suspensão do pagamento da dívida por alguns estados e municípios e a elevação dos juros pagos pelo Tesouro Nacional para se financiar no mercado são ingredientes que só agravam o quadro, pois aumentam o desequilíbrio na regra de ouro.

O risco de descumprir a regra de ouro entrou no radar do Tesouro Nacional e da Secretaria de Orçamento Federal em 2017, na esteira dos sucessivos déficits desde 2014. Mas a necessidade de fazer o primeiro pedido de crédito suplementar para atender à norma se deu em 2019.

O governo de Jair Bolsonaro (PL) escolheu condicionar despesas essenciais e com apelo político e social, como benefícios previdenciários e do Bolsa Família, como estratégia para acelerar a liberação. Mesmo assim, enfrentou duras negociações envolvendo pedidos de emendas e verbas. Em 2020, o crédito da regra de ouro também se converteu em moeda de troca nas tratativas com parlamentares.

A partir de 2021, o Executivo conseguiu emplacar na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) um artigo para dar mais flexibilidade à equipe econômica. Na prática, despesas inicialmente condicionadas ao crédito suplementar avalizado pelo Congresso poderiam ser destravadas, caso surgisse alguma receita extra. A medida eliminou uma das fontes de pressão política.

Agora, sem ter de onde tirar recursos para seguir sem depender do Congresso, o governo Lula pode se ver obrigado a ceder em propostas de seu interesse ou liberar mais verbas em troca da aprovação do crédito, avaliam técnicos da área econômica e especialistas.

Mesmo a estratégia de condicionar benefícios sociais para sensibilizar parlamentares pode ser insuficiente diante de um ambiente político mais adverso.

O cientista político Rafael Cortez, sócio da consultoria Tendências, afirma que a nova composição das Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal será a variável central para determinar o grau de governabilidade e as chances de sucesso da agenda do governo de modo geral.

“Nos últimos anos, a Mesa Diretora foi formada, sobretudo a da Câmara, por nomes que rivalizaram com o Executivo, de tal sorte que o atual governo e o próprio PT precisaram apoiar a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) para não pagar o custo dessa oposição”, disse.

Segundo ele, há dois cenários possíveis. O primeiro, mais otimista, pressupõe a melhora na relação após a substituição de Lira, independentemente do nome escolhido pelos congressistas.

No segundo, mais pessimista, eventual racha do centrão em torno de diferentes nomes na disputa pelo comando da Câmara pode trazer mais instabilidade política, sobretudo se o vitorioso não conseguir superar essas divisões após a eleição. Na avaliação de Cortez, este é o cenário mais provável de se concretizar.

“No atual equilíbrio, Lira até precisa negociar, mas o governo consegue passar a matéria. Não tem uma paralisia. Em um cenário mais preocupante, o risco de paralisia não é desprezível”, disse.

Por ser essencial para o pagamento de benefícios sociais, o crédito da regra de ouro não deve travar totalmente. Mas a barganha tende a aumentar.

“Quanto maior a instabilidade, maior o custo dessa aprovação. O governo precisaria ceder em outros espaços que ele não gostaria”, afirmou Cortez.

ENTENDA O IMPASSE DA REGRA DE OURO

O que é a regra de ouro?

É uma norma prevista na Constituição que impede o uso de recursos obtidos via emissão de títulos da dívida para pagar despesas correntes, como salários e benefícios sociais.

O que acontece se houver desequilíbrio na regra?

O governo fica impedido de pagar as despesas descobertas. A única exceção é quando o Congresso aprova, por maioria absoluta, uma autorização especial para financiar os gastos com recursos da dívida pública.

Qual é o impasse enfrentado pelo governo?

Desde 2021, o governo tem conseguido recorrer a fontes de receitas financeiras extras para compensar o desequilíbrio na regra de ouro sem depender do Congresso Nacional. Essas fontes não devem mais ser suficientes a partir de 2025, o que obrigará o Executivo a negociar a liberação com os parlamentares.

A SITUAÇÃO DA REGRA DE OURO

Em 2024

Projeção no Orçamento: insuficiência de R$ 200,3 bilhões

Projeção atualizada em maio de 2024: margem positiva de R$ 25 bilhões

Próximos anos

2025: insuficiência de R$ 52,7 bilhões

2026: insuficiência de R$ 293,3 bilhões

2027: insuficiência de R$ 263,7 bilhões

2028: insuficiência de R$ 272 bilhões

*Por IDIANA TOMAZELLI

Fonte: Folha De S.Paulo – BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)