A Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo aprovou no fim de setembro um enunciado para pacificar o entendimento da corte sobre dívidas prescritas e a inclusão de dados dos devedores em plataformas de negociação de débitos, como o “Serasa Limpa Nome”.
3 de novembro de 2022, 8h16
A tese fixada pela Turma Especial da Subseção II de Direito Privado foi a seguinte: “A cobrança extrajudicial de dívida prescrita é ilícita. O seu registro na plataforma ‘Serasa Limpa Nome’ ou similares de mesma natureza, por si só, não caracteriza dano moral, exceto provada divulgação a terceiros ou alteração no sistema de pontuação de créditos: score.”
Segundo o presidente da Seção, desembargador Beretta da Silveira, o enunciado leva em consideração “a relevância dos precedentes judiciais para a promoção da segurança e estabilidade jurídicas”. Para o advogado e professor Marco Antonio Araújo Júnior, o enunciado, de fato, traz segurança jurídica em uma questão que não estava pacificada no tribunal.
“O enunciado resolve divergências entre decisões de Câmaras de Direito Privado do próprio TJ-SP e uniformiza o entendimento da corte, trazendo maior segurança jurídica. Os devedores de dívidas que foram atingidas pela prescrição não podem sofrer cobrança ou execução em via judicial ou extrajudicial”, afirmou.
Para o advogado, o enunciado não traz prejuízos aos credores nem configura uma “anistia” a devedores: “O credor tem um prazo considerável para exigir, inclusive na forma judicial, o cumprimento da obrigação. Mas a dívida não pode ser perpétua. A prescrição transforma a obrigação jurídica em obrigação natural e torna a dívida inexigível. O credor interessado deve se movimentar antes do prazo prescricional.”
O advogado Igor Rodrigues Britto, diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), acredita que o enunciado é importante para a proteção dos consumidores, mas ainda não é suficiente para impedir lesões aos mais vulneráveis. Segundo ele, a prescrição de uma dívida evita que “incertezas jurídicas se perpetuem” e, neste cenário, o enunciado é um “estímulo” para que credores adotem práticas mais equilibradas nas negociações.
Porém, Britto considera que a inclusão de uma dívida prescrita em plataformas como o “Serasa Limpa Nome” deveria ter sido equiparada a inserções em cadastros de inadimplentes, que, por sua vez, geram dano moral independentemente de prova do constrangimento. Para o advogado, o enunciado deveria impedir a inclusão de dívidas prescritas nesses sistemas em prol do princípio da boa-fé, da transparência e da ética nas relações.
“Ao permitir que plataformas possam continuar incluindo dívidas prescritas como se fossem exigíveis em processos de negociação, o enunciado ignora que esses sistemas induzem consumidores que quitaram seus débitos a acreditar que devem negociar, também, por aqueles que nem mais são exigíveis. Permitir que dívidas prescritas componham esses bancos de dados é o mesmo que proibir que elas sejam cobradas, mas nem tanto”, pontuou.
A advogada Bruna Rondelli, sócia da OGF Advogados, disse que o enunciado representa um “meio termo” e garante o direito tanto de credores quanto de devedores: “Em que pese ter o credor direito de cobrar suas dívidas, é razoável que, ao deixar de exercê-lo dentro do prazo legal, se opere a prescrição. Deve haver uma relação de equilíbrio: de um lado o credor tem todo tempo hábil para cobrar a dívida e, de outro, o devedor tem o conforto de que não permanecerá uma vida inteira esperando receber a cobrança.”
Ela também não considera que o enunciado seja uma espécie de “perdão” aos devedores e concorda com o afastamento do dano moral em relação ao “Serasa Limpa Nome”. “As plataformas de negociação de dívidas oferecem condições atrativas aos devedores para que quitem suas dívidas, logo, a inclusão correta do nome de um devedor, por si só, ou seja, sem que ocorra sua exposição a terceiros, não pode ser interpretada como uma violação aos direitos da personalidade”, disse.
Já o advogado Cauê Yaegashi, sócio-diretor do escritório Eckermann | Yaegashi | Santos – Sociedade de Advogados, acredita que o enunciado contribui para mais insegurança jurídica. Isso porque, no entendimento do advogado, a prescrição não extingue a obrigação de pagamento, e é apenas um óbice para que o valor seja cobrado judicialmente.
“Nada impede que a cobrança seja pela via extrajudicial, desde que sob obediência ao disposto no artigo 42 do CDC no que se refere à abordagem do devedor, porque o direito subjetivo do credor remanesce. (O enunciado) é totalmente prejudicial à ordem econômica. Significa dar aval ao devedor contumaz e poderá estimular a inadimplência”, afirmou.
Yaegashi concorda, por outro lado, que não há ilicitude em buscar uma conciliação entre credor e devedor via plataformas digitais, como o “Serasa Limpa Nome”, pois é uma maneira de informar ao consumidor da existência de débitos passíveis de negociação. Dessa forma, na visão do advogado, não cabe dano moral pela inclusão do nome do devedor na plataforma.
“A questão de plataformas de negociação tem sido discutida em todo o país, ensejando Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) em outros estados, como Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte. É forte e pacífico que o convite a negociar não se trata de cobrança vexatória. Já há decisão favorável no IRDR do Rio Grande do Sul indicando a legalidade da inclusão no ‘Serasa Limpa Nome’ de dívidas prescritas e ausente qualquer direito a indenização.”
De acordo com o advogado Frederico Glitz, mestre e doutor em Direito pela UFPR, é preciso se atentar para que uma “eventual generalidade” dos termos do enunciado não conduza a uma interpretação equivocada. Ele disse que a cobrança extrajudicial de uma dívida, por si só, não é ilícita. O que é ilegal, explicou, é a cobrança abusiva, ou seja, aquela realizada de forma a constranger, ameaçar ou expor o devedor ao ridículo.
“O devedor deve, portanto, sempre lembrar que a prescrição não extingue a dívida (por isso ainda há o débito), apenas sua exigibilidade”, disse Glitz, que completou: “Como a prescrição não extingue a dívida, seria inviável se defender uma ‘anistia’ ao devedor. O que se deve ter em mente é que a ilicitude da cobrança estaria associada ao abuso do direito de crédito, isto é, só haveria tal ilicitude se fosse ofendida a boa-fé objetiva, a função econômica e social da própria cobrança.”
Precedentes que confirmam a tese
Ao publicar o enunciado, a Seção de Direito Privado citou dez precedentes que confirmam a nova tese. Os julgamentos ocorreram entre setembro de 2021 e fevereiro de 2022 e, em todos, os desembargadores entenderam pela ilicitude da cobrança extrajudicial de dívidas prescritas, mas afastaram o pedido de indenização por danos morais pela mera inclusão de dados do devedor no “Serasa Limpa Nome”.
Em sete casos, o TJ-SP reformou parte das sentenças de primeiro grau para reconhecer a impossibilidade de se cobrar uma dívida prescrita por via extrajudicial. De acordo com o desembargador Milton Carvalho, da 36ª Câmara, não se pode permitir atos de cobrança por prazo indefinido. “Dessa forma, verificada a prescrição, não se permite também a cobrança mesmo que por meios extrajudiciais”, disse.
Com relação ao “Serasa Limpa Nome”, o desembargador Almeida Sampaio, da 25ª Câmara, disse, ao negar a reparação por danos morais, que o devedor não teve o nome negativado, nem mesmo houve demonstração de conduta abusiva por parte da empresa credora, “de modo que a indicação na plataforma de dívida, ainda que indevida, configurou mero dissabor que não atinge a esfera do direito de personalidade do autor”.
Na mesma linha, a desembargadora Ana Lucia Romanhole Martucci, da 33ª Câmara, disse que o dano moral in re ipsa, que ocorre com a negativação indevida, exige a divulgação a terceiros de pendência financeiras, ensejando prejuízo na obtenção de crédito no mercado, o que não acontece com a inscrição no “Serasa Limpa Nome”, que não é disponibilizada a outras pessoas.
Como o TJ-SP vinha julgando a questão
O Anuário da Justiça de São Paulo 2022, que será lançado na próxima terça-feira (8/11), identificou divergências entre as Subseções de Direito Privado 2 e 3 em ações relacionadas à cobrança extrajudicial de dívidas prescritas e o “Serasa Limpa Nome”. Uma pesquisa no site do tribunal com o nome da plataforma apresentava quase sete mil resultados em setembro de 2022.
Por exemplo, para a maioria da 13ª Câmara, o “Serasa Limpa Nome” não pode ser equiparado a cadastros de inadimplentes, uma vez que não há publicidade das informações e, portanto, não há dano moral a ser indenizado. Na visão da 32ª Câmara, a plataforma apenas fomenta a negociação da dívida diretamente com as empresas cadastradas.
Já a 15ª Câmara reconhece a ocorrência de dano moral nos casos em que devedores buscam cancelar as anotações no “Serasa Limpa Nome”, determinado, ainda, a exclusão do lançamento negativo, sob pena de multa. A 20ª Câmara também entende que, se o débito prescrito não pode mais ser cobrado judicial ou extrajudicialmente, por não ser mais exigível, o credor não pode persistir na cobrança.
Na 30ª Câmara, em um dos casos analisados pelo Anuário, houve divergência e julgamento estendido. A maioria, seguindo o desembargador Carlos Russo, entendeu que uma dívida prescrita não pode ser cobrada nem mesmo extrajudicialmente. E, portanto, o cadastro na plataforma de negociação gera indenização por danos morais.
“Possível cogitar que se trata de mecanismo concebido para atuar no interesse de empresas e bancos, acenando com simples intermediação conciliatória, na essência, todavia, a atuar no resgate de créditos prescritos, inexigíveis, ‘convidando’ consumidores a ‘limpar o nome’, prática, a meu ver, totalmente abusiva”, escreveu Russo.
O desembargador Andrade Neto ficou vencido ao defender que a prescrição não apaga a obrigação e nem tira do credor o direito de cobrar o valor por via extrajudicial, “contanto que não o faça de modo abusivo ou vexatório”. Em seu entendimento, os valores inscritos no “Serasa Limpa Nome” não se confundem com negativação.
*Por Tábata Viapiana – repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 3 de novembro de 2022, 8h16