A teoria da perda da chance prevê o dever de indenizar quando, em que pese a impossibilidade de comprovar o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, estiver demonstrado que o réu deixou de empreender todas as diligências possíveis para minimizar a possibilidade de ocorrência do evento danoso.
10 de agosto de 2022
Com base nesse entendimento, a 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou sentença de primeiro grau para condenar uma médica e a Santa Casa de Misericórdia de Santos a indenizar uma criança e seus pais por erro médico.
A reparação por danos morais foi fixada em R$ 40 mil para o menino e mais R$ 20 mil para cada um dos pais. A decisão se deu em julgamento estendido, após debates entre os magistrados, que chegaram a um consenso e votaram no mesmo sentido.
De acordo com os autos, o menino apresentava febre, dor de cabeça e vômito, e os pais o levaram ao hospital. Ele foi atendido por uma médica pediatra residente, que receitou alguns medicamentos, não solicitou exames e liberou a família. Nove horas depois, eles retornaram ao hospital após uma piora no quadro de saúde do menino.
Ele acabou diagnosticado com meningite e teve que ser internado imediatamente na UTI. Em razão das sequelas da doença, o menino teve que amputar as duas mãos, o nariz e as pernas abaixo dos joelhos. Com isso, os pais contestaram na Justiça o primeiro atendimento e apontaram negligência da médica.
Para eles, se a meningite tivesse sido detectada com antecedência, o jovem não teria sofrido tantas sequelas, que o afetam até hoje. Mas, em primeira instância, a ação foi julgada improcedente. Ao acolher em parte o recurso da família, o relator, desembargador Rodolfo Pellizari, teceu alguns comentários sobre as premissas que balizam a prestação jurisdicional em demandas que envolvem serviços médicos.
“Com fulcro em notável doutrina pátria e remansosa jurisprudência do a. STJ, fica delineada a responsabilidade objetiva e solidária do hospital e a responsabilidade subjetiva do profissional de medicina, por se tratar de obrigação de meio”, disse o relator, destacando, ainda, a importância da prova técnica em ações dessa natureza, sem dar às conclusões do perito judicial efeito vinculativo à decisão do juiz.
No caso dos autos, Pellizari destacou a conclusão da perícia quanto à gravidade da doença que acometeu o menino, à época com 7 anos, e levou à amputação de alguns membros. “Assim, imperioso reconhecer que acometido por grave patologia, lamentavelmente o infante estaria sujeito às inevitáveis sequelas, conforme sobejamente demonstrado nestes autos”, acrescentou.
No entanto, prosseguiu o magistrado, não se pode ignorar o fato de que a extensão das sequelas está diretamente ligada ao diagnóstico precoce da doença, sendo de suma importância verificar o acerto da conduta médica na primeira consulta. Acontece que o hospital não localizou os prontuários do primeiro atendimento ao menino.
“O nosocômio cometeu grave falha ao extraviar referido documento, pois tem o dever legal de documentar, por meio de elaboração de ficha individual de atendimento do paciente e promover sua guarda pelo prazo de 20 anos, conforme Resolução do Conselho Federal de Medicina 1.821/07. A perícia médica foi incisiva ao asseverar que a ausência de aludido documento prejudicou a verificação de correição do primeiro atendimento médico ao paciente”, argumentou.
Segundo o julgador, diante da ausência de informações sobre a primeira consulta, “por meio da obrigatória apresentação de prontuário”, caberia aos réus o ônus da prova de correição da prestação do serviço médico, o que não aconteceu. Diante desse quadro fático, para Pellizari, a demanda não poderia resultar em improcedência integral dos pedidos iniciais.
“Agiu de forma negligente a profissional que realizou tal atendimento inicial, sendo certo que, caso o menor tivesse sido mantido em observação por mais tempo, as manchas pelo corpo (petéquias) iriam surgir, o que, de fato ocorreu, mas na residência da vítima, sendo conduzida novamente ao nosocômio nove horas após a consulta”, apontou.
Teoria da perda de uma chance
Portanto, considerando a negligência médica decorrente da alta precipitada da criança, o desembargador aplicou ao caso a teoria da perda de uma chance, uma nova categoria de dano indenizável no campo da responsabilidade civil, “caracterizada pela indenizibilidade decorrente da subtração da oportunidade futura de obtenção de um benefício ou de evitar um prejuízo”.
Conforme o magistrado, o reconhecimento da perda de uma chance requer a presença de todos os pressupostos que configuram a responsabilidade civil: conduta culposa ou dolosa, dano e nexo causal. Porém, há uma mitigação do nexo, visto que a perda de uma oportunidade pressupõe a probabilidade de um resultado, que não se configurou em razão da conduta de um terceiro.
“Em outras palavras, a teoria da perda de uma chance baseia-se em um evento probabilístico. No caso, se o tratamento correto da patologia tivesse se iniciado mais cedo, desde o primeiro atendimento, muito provavelmente as sequelas seriam minoradas, ou seja, talvez o menor não tivesse perdido seu nariz e parte de seus membros superiores e inferiores”, explicou o relator.
Ele também negou o pagamento de indenização por danos materiais e estéticos, pois a amputação de membros ocorreu durante o período de internação hospitalar, como forma de combater o quadro infeccioso e preservar a vida do paciente. Por outro lado, reconheceu a ocorrência de dano moral em razão da negligência na primeira consulta.
“A dor sofrida pelos apelantes é de impossível mensuração, diante das severas limitações impostas ao infante, que se perpetuarão por toda sua vida e, de igual forma, seus genitores, que suportarão toda espécie de dificuldade para conferir, na medida do possível, a inserção de seu filho em um cotidiano permeado por circunstâncias naturais da vida”, concluiu.
Declarações de voto
Em declaração de voto convergente, a desembargadora Ana Zomer, 5ª juíza, afirmou que o caso envolve o que a doutrina chama de erro desonesto. “Em que pese a ausência do prontuário médico referente ao primeiro atendimento médico, é certo que não há notícias ou qualquer comprovação de que aludida profissional tenha solicitado exames para análise do quadro clínico do paciente”, disse.
Já na visão do desembargador Modesto de Souza, 2º juiz, os sintomas apresentados pelo menino não recomendavam sua liberação sem ao menos uma investigação por meio de exame laboratorial: “Apesar de saber que os sintomas são comuns a várias doenças, a médica não comprovou ter solicitado a realização de exames laboratoriais para descartar o diagnóstico de doenças graves”.
Segundo o magistrado, daí decorre a culpa da médica, que foi negligente ao não solicitar exames que poderiam identificar uma anormalidade sanguínea e levar ao diagnóstico precoce de meningite. Inicialmente, ele não verificou o nexo causal entre a culpa da médica e as sequelas suportadas pelo menino, uma vez que a meningite é uma doença grave e pode causar amputações. Porém, Souza revisou seu posicionamento.
“Após a prolação do voto da eminente quinta desembargadora, revi meu posicionamento quanto ao nexo causal, pois a estatística trazida no referido voto indica que, se o paciente não fosse dispensado e, ao contrário, exames complementares fossem realizados, ele poderia receber tratamento adequado mais precocemente, aumentando sobremaneira a probabilidade de não ter sequela alguma”, indicou.
0017212-46.2013.8.26.0562
*Por Tábata Viapiana – repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 9 de agosto de 2022, 21h04