O governo federal enviou na última semana ao Congresso Nacional um projeto de lei que busca aprimorar os processos de falência. Uma das principais sugestões é a criação da figura do gestor fiduciário, responsável por gerir a falência e vender os bens para pagar os credores. Essa ideia, porém, não foi bem recebida por especialistas no assunto, que acreditam que a novidade pode se tornar uma complicação a mais e que o texto do PL traz mais dúvidas do que soluções.
15 de janeiro de 2024
O projeto propõe alterações na Lei de Falências, que é de 2005 e passou por uma ampla reforma em 2020. Segundo a justificativa do Ministério da Fazenda, o objetivo das propostas é agilizar os processos de falência e dar mais poder aos credores.
A figura do gestor fiduciário, escolhido pelos credores por meio de uma assembleia, surge para substituir o administrador judicial — já responsável pela arrecadação, avaliação e alienação de ativos —, que é nomeado pelo juiz.
Tumulto à vista
No entendimento da juíza Clarissa Somesom Tauk, da 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, o projeto de lei do governo, sobretudo no que se refere à figura do gestor fiduciário, “não tem nenhuma garantia de eficiência e melhora no cenário das falências”. Além disso, ela acredita que o texto comete o erro de dar poder exagerado a alguns atores do processo de falência.
“O texto acaba dando a possibilidade de que os maiores credores — como bancos e a Fazenda Pública — possam dominar todos os rumos da falência, inclusive decidindo sobre como ocorrerá a venda dos bens. Por exemplo, se o Banco X tiver 50,1% dos créditos da falência, ele passa a ditar os rumos do processo”, comentou a magistrada. “Evidentemente que, como a Lei de Falências traz regras de ordem pública, que objetivam a proteção de credores mais vulneráveis, essas situações demandarão indispensável controle judicial de legalidade, o qual, por sua vez, trará inevitável questionamento por recurso, o que poderá atravancar e trazer retardo ao fluxo processual. Ao invés de eficiência, teremos tumulto processual.”
Segundo a advogada Lívia Gavioli Machado, sócia da Ativos Administração Judicial e Consultoria Empresarial, empresa especializada em insolvência, as funções propostas para o gestor fiduciário são as mesmas já desenvolvidas pelo administrador judicial.
Para ela, isso “parece ser contraproducente”, pois não gera benefícios aos credores — traz apenas “mais ônus e encargos na condução de atos já englobados na lei”.
Além disso, Lívia considera que o PL não deixa clara a posição do gestor com relação à “perseguição de eventuais desvios e fraudes, o que pode ser de grande valia em processos falimentares, visando à arrecadação de ativos valiosos ao pagamento dos créditos”.
A advogada Cybelle Guedes Campos, especialista em reestruturações empresariais, concorda que a função do gestor fiduciário “já é em grande parte realizada hoje pelo administrador judicial”.
Ela enxerga um retrocesso no texto enviado pelo governo ao Congresso, pois acredita que os administradores judiciais já exercem muito bem suas atribuições. “Os problemas do processo falimentar não estão no administrador judicial”, pontua a especialista.
De acordo com Cybelle, o maior problema relativo ao tema é o excesso de judicialização de “muitas coisas que poderiam ser realizadas extrajudicialmente”, fruto da legislação atual. Assim, a advogada não vê motivo para a criação de uma nova figura no processo de falência.
Outros pontos destacados por ela são a falta de clareza sobre limitações aos honorários do gestor fiduciário e a inexistência de requisitos mínimos para se exercer tal função. Cybelle ressalta que as alterações promovidas em 2020 na Lei de Falências “sequer foram testadas”, o que enfraquece a busca por novas mudanças.
Sobre os honorários do gestor, a juíza Clarissa Tauk também considera um equívoco a falta de limite para esses valores. “Um profissional escolhido pelos maiores credores e por esses mesmos credores remunerado sem um limite de honorários!”, destacou ela.
Já Camila Crespi, especialista em reestruturação empresarial, considera que a criação do gestor fiduciário “não traz grandes mudanças”, justamente porque parte da atuação dessa figura já é desempenhada pelo administrador judicial. Mesmo assim, ela acredita que o PL “poderia melhorar a atuação dos administradores judiciais”.
Na sua visão, as últimas alterações na legislação já trouxeram a agilidade de que o procedimento de falência precisa, a exemplo do prazo de 180 dias para a alienação dos ativos. Segundo Camila, a rapidez e transparência “depende de todos os players“: Judiciário, administrador judicial, empresa falida e credores.
A advogada não enxerga a proposta do governo como sinônimo de maior segurança. “Se o PL não preencher as lacunas existentes, poderá ser um verdadeiro retrocesso.”
Mais problemas
Lívia chama a atenção para um trecho do PL que retira, na assembleia-geral de credores, o direito de voto das classes de credores para as quais não haja expectativa de nenhum pagamento no plano de falência.
Segundo ela, é “temerário mensurar qual seria o valor final a ser recebido com a venda dos ativos, ainda que de forma conservadora”.
Para Camila, essa ideia não traz “uma igualdade de credores, que o instituto deveria prever”, mas dá maior poder aos que têm créditos expressivos — geralmente, bancos e o Fisco.
Ela destaca ainda que o PL apresentado pelo governo “visa apenas e tão somente a dar maior poder ao Fisco”, que é um dos credores nos procedimentos de falência, mas não tem grande destaque nas recuperações judiciais.
Contraponto
Por outro lado, a advogada Fernanda Sanches, especialista em Direito Empresarial e contencioso cível, vê pontos positivos no PL.
Ela reconhece que o texto possui “alguns aspectos não tão aprofundados”, mas considera que ele “representa um aprimoramento da participação dos credores, bem como pode e deve conferir maior celeridade aos processos falimentares”.
Para Fernanda, a possibilidade de que a assembleia-geral de credores nomeie um gestor fiduciário “deve viabilizar uma maior efetividade na gestão dos recursos da massa falida e essencialmente na alienação de ativos”.
Essa nova figura, segundo ela, chega para “conferir maior efetividade (e segurança) à liquidação desses ativos e ao pagamento dos passivos, a fim de, sob outro viés, mitigar os prejuízos a todas as partes envolvidas”.
“Nada mais lógico do que atribuir uma maior governança aos credores no processo falimentar”, conclui a advogada.
Clique aqui para ler a proposta na íntegra
PL 3/2024
- Por José Higídio – repórter da revista Consultor Jurídico.
- Fonte: Revista Consultor Jurídico