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Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo têm decidido que operadoras de planos de saúde devem custear cirurgias de mastectomia masculinizadora em homens transexuais. O procedimento faz parte da transição de gênero e consiste na redução das mamas e em dar um contorno masculino. Desde o início do ano, foram pelo menos quatro decisões favoráveis aos pacientes.

22 de abril de 2023
TJ-SP tem ordenado que planos de saúde cubram cirurgias de masectomia em homens trans – Recstockfootage/Freepik

Em um dos casos, a 6ª Câmara de Direito Privado obrigou um plano de saúde a cobrir a mastectomia masculinizadora após a cirurgia ter sido negada com o argumento de ausência de cobertura contratual. O relator, desembargador Marcus Vinícius Rios Gonçalves, disse que deve prevalecer o tratamento prescrito pelo médico do autor, conforme o método indicado.

Para embasar a decisão, o magistrado também citou a Súmula 102 do TJ-SP, que tem a seguinte redação: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.”

“O procedimento pleiteado integra o rol de procedimentos da ANS, com previsão expressa no Anexo I do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, regulamentado pela Resolução Normativa 465/2021, da ANS, vigente a partir de 1º/4/2021. A recusa da ré é abusiva”, afirmou Gonçalves.

A Súmula 102 do TJ-SP também foi citada em decisão da 4ª Câmara de Direito Privado que ordenou o custeio de uma mastectomia masculinizadora. Segundo o relator, desembargador Alcides Leopoldo, a transexualidade é um “fenômeno social” e as pessoas transexuais precisam ser tratadas com respeito, independentemente de como se apresentam em sociedade.

“Reiteradamente o Supremo Tribunal Federal, invocando princípios essenciais como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade, reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental de estar bem consigo mesmo”, afirmou.

No caso dos autos, Leopoldo destacou que o autor sofre de ansiedade e depressão por não conseguir adequar seu corpo à sua identidade de gênero. Segundo ele, não há qualquer contraindicação para a cirurgia de restabelecimento da identidade de gênero. O relator, então, aplicou ao caso a Súmula 102 e reconheceu a abusividade da recusa do plano.

“Ademais, importante ter em mente que a intervenção cirúrgica prescrita tem por finalidade não apenas assegurar que não mais tenha aparência de pessoa do sexo feminino, mas sim garantir a aparência de pessoa do gênero com o qual se identifica (sexo masculino), não havendo que se falar em natureza puramente estética da cirurgia”, concluiu.

Estado de sofrimento
Além de ordenar o custeio de uma cirurgia de mastectomia masculinizadora, a 8ª Câmara de Direito Privado também condenou um plano de saúde ao pagamento de indenização por danos morais, no valor de R$ 20 mil, em razão da abusividade da negativa de cobertura, que causou sofrimento ao autor.

Na visão do relator, desembargador Alexandre Coelho, apesar de o mero inadimplemento contratual, por si só, não gerar dano moral indenizável, o caso dos autos tem particularidades que justificam o acolhimento do pleito indenizatório. Com isso, ele acolheu em parte o recurso do autor para fixar a reparação.

“O autor, homem transgênero em acompanhamento junto ao ambulatório de transexualidade desde 2019, necessita da cirurgia não por um quadro de saúde ou para fins estéticos, mas como decorrência de processo transexualizador; para adequar seu corpo à sua identidade de gênero. O direito à identidade, enquanto direito da personalidade, é amplamente protegido pela legislação. Tratando-se o dano moral de lesão extrapatrimonial ao direito da personalidade, restou configurado.”

Para o magistrado, a operadora de saúde praticou um ato ilícito ao negar a cobertura do procedimento, o que prolongou o estado de sofrimento do autor, “de forma que a ofensa teve intensidade suficiente para configurar dano moral indenizável, extrapolando a situação de mero dissabor cotidiano”.

TJ-SP tem considerado abusiva a recusa de planos de custear cirurgias para homens trans – nunezimage/freepik

Jurisprudência do STJ
O desembargador Schmitt Corrêa, relator de um processo semelhante na 3ª Câmara de Direito Privado, disse que a opção pelos tratamentos, procedimentos cirúrgicos e materiais a serem utilizados constitui prerrogativa do profissional médico que assiste o paciente. Com isso, ele considerou abusiva a recusa da operadora e determinou a realização da mastectomia masculinizadora.

“A recusa somente poderia ser admitida se houvesse comprovação de que a cirurgia era inadequada em relação à boa técnica médica ou que existia uma alternativa para atender a solicitação do paciente, o que, de fato, não restou demonstrado. Os documentos acostados aos autos demonstram que foram seguidos todos procedimentos indicados pelos órgãos governamentais, inclusive pareceres médicos de diversas especialidades, como garantia da correção e adequação da cirurgia discutida nos autos. Desta forma, a recusa da apelante foge à boa-fé e ao dever de lealdade, em evidente prejuízo ao consumidor.”

O magistrado citou o julgamento do EREsp 1.886.929 e do EREsp 1.889.704, em que o Superior Tribunal de Justiça definiu que o rol de procedimentos em eventos de saúde suplementar é, em regra, taxativo. No caso, afirmou Corrêa, a cirurgia de mastectomia integra o rol de procedimentos da ANS e sua utilização não se restringe ao tratamento de tumores de mama.

“Portanto, ao contrário do quanto quer fazer crer a operadora de saúde, o procedimento integra o rol de coberturas obrigatórias da ANS e os requisitos para concessão foram cumpridos pelo autor, não cabendo à requerida a negativa de cobertura ante a exigência de relatório médico de especialidade endocrinologista”, diz o acórdão, citando trecho da sentença de primeiro grau.

No Direito Público
Uma decisão semelhante foi tomada em ação ajuizada contra o estado e a Prefeitura de São Paulo. Uma mulher transexual buscou na Justiça o direito de realizar cirurgia plástica mamária reconstrutiva, com colocação de prótese de silicone, pelo SUS. Ela obteve sentença favorável em primeiro grau, que foi mantida pela 11ª Câmara de Direito Público.

Para o relator, desembargador Márcio Kammer de Lima, o caso envolve o direito à saúde, que é um direito fundamental, constitucionalmente tutelado, a ser plenamente atendido por meio de políticas públicas implantadas pela administração. Ele lembrou que procedimentos relacionados à transição de gênero já foram incluídos em atos normativos no SUS (Portarias MS 2.803/2013 e 11/2014).

Lima também destacou a vasta documentação anexada aos autos: “Composta por expressos encaminhamentos por parte de médicos cirurgião e endocrinologista, além da profissional de psicologia que acompanha o processo de transição de gênero, comprovando tratar-se o procedimento cirúrgico da única alternativa médica existente para o caso da requerente.”

Assim, constatada a incontroversa indicação médica e o preenchimento dos requisitos normativos para a cirurgia, “em conjunto com a flagrante falta de atendimento à autora”, o relator determinou a realização do procedimento pelo SUS, especialmente porque o estado possui um hospital referência em cirurgias mamárias para pessoas transexuais.

Processo 1075817-59.2021.8.26.0053
Processo 1012820-48.2021.8.26.0309
Processo 1006613-44.2022.8.26.0100
Processo 1013879-33.2021.8.26.0451
Processo 1000369-94.2022.8.26.0619

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2023, 9h47