Ives Gandra da Silva Martins começou a advogar em 1958. Nos 65 anos que se passaram desde então, sua carreira experimentou uma série de transformações, assim como o país. E, segundo ele, a principal diferença entre a advocacia do meio do século passado para a da década de 2020 é que, antes, o Supremo Tribunal Federal limitava-se a interpretar o Direito, enquanto hoje a corte também legisla, interferindo nas funções do Executivo e do Legislativo.
2 de maio de 2023
“No momento em que o Judiciário entende que pode exercer atos do Legislativo ou corrigir os rumos do Executivo, passa a ser um terceiro poder político. Porém, seus membros não são eleitos pelo povo, diferentemente do que ocorre no Executivo e no Legislativo. Isso traz insegurança política e indiscutivelmente dificulta o exercício da advocacia”, avalia Ives Gandra.
Em dezembro de 2021, ele transferiu o comando de seu escritório, a Advocacia Gandra Martins, para seu filho Rogério Gandra Martins. Ives Gandra, atualmente com 88 anos, tomou a decisão de deixar o dia a dia da banca após a morte de sua mulher, Ruth Vidal da Silva Martins, e devido à sua atuação em conselhos profissionais e culturais. Porém, ele continua como consultor da firma, elaborando pareceres e auxiliando o filho em casos complexos.
Ives Gandra começou a carreira na área trabalhista, mas ganhou notoriedade como tributarista e constitucionalista. Ele foi o responsável por diversos precedentes importantes do STF, e talvez o mais precioso deles tenha sido o caso em que o Supremo reconheceu o princípio da anualidade tributária — que seria posteriormente incluído na Constituição Federal de 1967.
Contudo, o advogado também teve derrotas marcantes. Entre elas, a decisão do STF de permitir pesquisas com células-tronco. Segundo Ives Gandra, o passar dos anos mostrou que ele estava certo. Afinal, tal método não gerou resultados expressivos até hoje, diz ele. E o médico japonês Shinya Yamanaka, citado pelo advogado na sustentação oral no Supremo, foi condecorado com o prêmio Nobel de Medicina de 2012 por desenvolver uma técnica que consegue resultados semelhantes aos das células-tronco, mas com menos efeitos colaterais e sem envolver embriões humanos.
Ives Gandra sempre conciliou as carreiras de advogado e professor universitário. Entre outras instituições, ele foi docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Ele é autor de mais de mil pareceres, 87 livros individuais e centenas em coautoria, incluindo obras com sete dos atuais dez ministros do STF.
Na primeira parte da entrevista concedida à revista eletrônica Consultor Jurídico (a segunda será publicada nesta quarta-feira, 3/5), Ives Gandra ainda lembrou os melhores professores de Direito que teve e contou como foi sua relação com a ditadura militar (1964-1985).
Leia a seguir a primeira parte da entrevista:
ConJur — O senhor passou seu escritório para o seu filho em dezembro de 2021, ficando como consultor da banca. Como isso está funcionando?
Ives Gandra Martins — Eu estou com 88 anos e perdi a minha esposa em 2021. Ela era minha colega de turma. Começamos a namorar aos 18 anos, fizemos o cursinho juntos e entramos na faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1954, nos formamos em 1958, tivemos seis filhos. Ela sempre foi uma grande apoiadora de tudo o que eu fazia. Chegou a ser minha sócia quando teve mais disponibilidade de tempo. Quando não teve mais disponibilidade, deixou de ser sócia, mas sempre revia meus pareceres. Ela dominava muito bem o idioma e era uma ótima revisora do que eu escrevia. No escritório, eu sempre fiz questão de que todas as peças fossem lidas por um segundo advogado, para que não houvesse risco de passar alguma coisa despercebida ou ficar faltando algo.
Além do falecimento da Ruth, tem o fator de que eu ainda tenho uma atuação na parte cultural, em conselhos. Sou da Academia Paulista de Letras, atuo no Conselho dos Notáveis da Escola do Comércio. Eu gosto dessas atividades, pois, por meio delas, pode-se dar uma contribuição extraprofissional.
Por outro lado, o meu filho Rogério Gandra Martins começou, desde o primeiro ano na São Francisco, a trabalhar comigo. Quando eu lhe passei o escritório, já fazia 34 anos que ele trabalhava comigo, conhecia o meu estilo de advocacia, escrevia livros comigo. Então eu me senti à vontade para passar o escritório para ele.
E ele está tocando muito bem o escritório, com um estilo novo, o estilo dele. Nós comunicamos os clientes, mas alguns deles nem perceberam a minha saída. Alguns vêm me procurar, eu digo que não sou mais dono do escritório, e eles se surpreendem. Isso é um sinal de que estão muito satisfeitos com a continuação do escritório. O fato de uma parte da equipe ter continuado com ele também contribui para isso. Enfim, o escritório está indo muito bem. E, quando o meu filho acha que precisa de mim como consultor, trabalhamos juntos, como já fazíamos no passado.
ConJur — Qual foi o primeiro caso em que o senhor atuou como advogado?
Ives Gandra Martins — Eu entrei na advocacia quando me formei, em 1958, mas como solicitador comecei a trabalhar em 1957. E atuei como solicitador principalmente em Direito do Trabalho, porque nessa área era permitido fazer audiências mesmo não sendo advogado. Assim que me formei, entrei como sócio em um escritório com João Pessoa de Albuquerque, Murillo Alves Ferraz de Oliveira e José Carlos Graça Wagner. Os primeiros casos que eu tive foram mais de Direito do Trabalho. A minha primeira sustentação oral foi no Tribunal de Justiça de São Paulo, em 1959.
A primeira sustentação no Supremo Tribunal Federal foi em 1962 ou 1963. Era um caso muito importante, que discutia o princípio da anualidade, e no qual saímos vitoriosos. A decisão, por 6 a 5, demonstrou que prevalecia o princípio da anualidade no Brasil. Ou seja, o orçamento deveria ser aprovado até o dia 15 de novembro, e não se podia fazer qualquer coisa que aumentasse impostos até 31 de dezembro. A decisão do Supremo veio a provocar, na Constituição de 1967, a mudança para que prevalecesse o princípio da anualidade, e não só o da anterioridade.
ConJur — Qual foi a sua primeira grande vitória na advocacia? E a primeira grande derrota?
Ives Gandra Martins — É muito difícil lembrar. No início, como fazíamos tributário e sempre foi uma característica do escritório não pegar questões que pensávamos que eram impossíveis de defender ou contribuintes que não pagavam tributos, nós não assumíamos esses casos. Só pegávamos casos nos quais víamos viabilidade. O que nos foi caracterizando desde o início é que tínhamos muito mais vitórias, e as derrotas eram pontuais.
O primeiro grande conflito foi com a questão do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC) entre os estados, no Supremo. Nós discutimos uma tese da não incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). De acordo com a Constituição e com o Código Tributário Nacional, o IPI era um imposto que incidia fundamentalmente sobre os produtos. O ICMS substituiu o IVC. Agora, o cálculo por dentro do ICMS fazia uma operação estranha. Como calculava o produto por dentro, na prática, o IPI estava sendo de 18% sobre o que era tributo, e não sobre o produto que estava sendo vendido. Nós discutimos a tese de que o valor da operação deveria corresponder ao valor da mercadoria sobre a qual deveria incidir o IPI, não podendo o IPI incidir sobre o tributo a ser pago ao estado, ou seja, o ICMS.
Essa tese foi vencedora em alguns tribunais e com relação a certos setores da economia. Nesse caso no STF, nós estávamos representando a empresa Sudam de Cigarros. O IPI cobrado sobre cigarros, na época, 1969, correspondia a três vezes o valor do produto. Isso se devia a um erro técnico do governo militar. Por isso, as empresas de cigarro estavam correndo risco de falir e passaram a contestar judicialmente a dupla tributação.
O então ministro da Fazenda, Delfim Netto — que hoje é um bom amigo meu —, mandou prender os diretores da Sudam, com base em um decreto-lei que editou para estabelecer que o não recolhimento do IPI configurava apropriação indébita. Não só isso: Delfim Netto pediu o confisco dos bens dos advogados da Sudam — eu e meus sócios — e a abertura de um inquérito policial militar. Isso em pleno regime militar, após a edição do Ato Institucional 5 (que cassou parlamentares, instituiu a censura e suspendeu o Habeas Corpus nos casos de crimes políticos). O argumento utilizado por Delfim era de que, se a Receita Federal considerava apropriação indébita a prática da Sudam, os honorários pagos aos advogados e declarados ao Imposto de Renda só poderiam derivar dessa apropriação ilícita, sendo os advogados coniventes com a empresa.
Mas nós conseguimos a libertação dos diretores da Sudam após 48 horas, e a decisão foi mantida em segunda instância e no Supremo. E o então ministro da Justiça, Gama e Silva, que tinha sido meu professor na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mandou arquivar o inquérito.
ConJur — Quais foram as causas mais importantes em que o senhor atuou como advogado?
Ives Gandra Martins — Eu não gosto de falar sobre advocacia porque sempre fui contrário a que o advogado faça propaganda das próprias causas. Mas houve alguns casos interessantes. Um é aquele do Supremo que reconheceu o princípio da anualidade tributária, que já mencionei. Outro é o caso da imunidade das listas telefônicas no Supremo. Havia toda uma jurisprudência entendendo que a lista telefônica não era um livro — portanto, não deveria ter imunidade tributária. Eu defendi a tese de que a lista telefônica era um livro, sim, e o resultado foi favorável.
Também defendi a lei que impunha a cobrança de contribuições sociais sobre a receita das empresas, e não só o faturamento. Essa lei tinha surgido sem embasamento constitucional. Ela tinha entrado em vigor 20 dias antes da emenda constitucional que acrescentava o termo “receita” ao artigo que falava das contribuições sociais. Então receitas não operacionais de empresas passaram a pagar contribuições sociais por força da emenda constitucional, mas elas já estavam sendo cobradas 20 dias antes por força dessa lei. Nós discutimos a constitucionalidade da lei, argumentando que aquilo que nasce inconstitucional não se constitucionaliza. Defendemos isso no Supremo e ganhamos.
Outro caso muito interessante foi o da alíquota zero que dava direito a crédito. A Fazenda entrou com uma série de ações rescisórias para poder cobrar daquelas empresas que tinham transitado em julgado no passado. Fomos ao Supremo Tribunal Federal e mostramos que as ações rescisórias propostas depois de dois anos não poderiam prevalecer. A Fazenda se baseou em uma súmula do Supremo que permitia a propositura após dois anos, mas nós argumentamos que não se podia aplicar a súmula no caso, pois ela tinha sido editada posteriormente à data de propositura das ações rescisórias. Obtivemos resultado favorável. Esses foram bons casos.
Mas teve outros em que eu perdi. Um deles foi o processo em que o Supremo, por 6 votos a 5, permitiu as pesquisas com células-tronco. Eu defendi que o ser humano é ser humano desde o zigoto, que qualquer pessoa, qualquer ministro do STF, foi zigoto e se tornou ser humano naquele momento. Então as células-tronco não podem ser utilizadas para curiosidade científica. E é curioso que até hoje isso não deu certo em nenhuma parte do mundo. Em minha sustentação oral, falei que um médico japonês tinha dado para as células os mesmos organismos pluripotentes que as células embrionárias têm sem dar os efeitos de rejeição e, ao mesmo tempo, tumores. E mostrei que não havia razão para fazer experimentos dessa maneira. Mas perdi. Alguns anos depois, esse médico (Shinya Yamanaka) ganhou o prêmio Nobel de Medicina. Eu estava certo, mesmo tendo perdido.
ConJur — O senhor poderia nos dar alguns exemplos de causas pro bono em que atuou?
Ives Gandra Martins — Eu atuei muito em causas pro bono. Por exemplo, certa vez o Santuário de Aparecida foi autuado em 20 e poucos processos. Eram autos de infração com valores elevados. Nós defendemos que a igreja não tinha condições de pagar os valores. Nós conseguimos ganhar no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que na época era Conselho de Contribuintes. Também defendemos a imunidade das entidades filantrópicas perante a Suprema Corte. Eu nunca cobrei nada por defender a Igreja Católica ou instituições que precisavam, que não tinham recursos por serem serviços sociais.
ConJur — Durante a sua carreira, o senhor foi procurado por quais governos em busca de soluções jurídicas?
Ives Gandra Martins — Eu sempre atuei de forma pro bono para a União, para o estado de São Paulo e para o município de São Paulo. Isso porque sou cidadão brasileiro, paulista e paulistano.
Na época do impeachment do presidente Fernando Collor, eu fiz dois pareceres sobre a matéria. A pedido do deputado Hélio Bicudo, demonstrei que a matéria deveria ser examinada pelo Congresso. Por solicitação do presidente Collor, apontei que tanto para o juízo de admissibilidade na Câmara dos Deputados como para o julgamento do mérito no Senado, havia necessidade de ter dois terços da casa legislativa a favor da medida. Por outro lado, Miguel Reale Jr. defendia a tese de que só para o julgamento no Senado os dois terços seriam necessários, enquanto para o juízo de admissibilidade bastaria maioria absoluta. Minha tese prevaleceu nos dois casos (Collor sofreu impeachment por decisão dos parlamentares, mas depois foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. A corte não encontrou nexo causal para justificar sua condenação entre os fatos alegados e eventuais benefícios auferidos no governo).
Para o estado e a prefeitura de São Paulo, fiz diversos pareceres sobre questões tributárias. Eu tenho mais de mil pareceres escritos. Pareceres com 60, 70, 80 páginas. Eu publiquei em torno de 700 deles em revistas especializadas.
Também autuei muito para a Zona Franca de Manaus, sempre com resultados positivos na Suprema Corte. Para outras cidades e estados, eu aceito ser contratado por notória especialização. Não entro em concorrências, até porque não preciso. Eles sabem das minhas titulações. Se precisarem, me chamam.
ConJur — O senhor foi procurado pelo governo de Jair Bolsonaro em busca de alguma solução jurídica?
Ives Gandra Martins — Eu conversei algumas vezes com Bolsonaro por telefone, mas não me lembro de alguma consulta jurídica específica. Ao lado de outros nove juristas, eu assinei uma nota pública, redigida no meu escritório, defendendo a constitucionalidade do indulto concedido por Bolsonaro ao então deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ). Também atuei pro bono nesse caso.
ConJur — O senhor participou da redação de projetos de lei? Se sim, quais?
Ives Gandra Martins — Não participei da redação de nenhum projeto de lei. Eu participei de audiências públicas. Por exemplo, nesse período em que se discutiu ativismo judicial, eu fui a duas audiências públicas no Senado e na Câmara dos Deputados. Mas eu nunca tive um cargo público. E nunca quis, mesmo quando convidado.
ConJur — Por que não?
Ives Gandra Martins — Porque a minha vocação é ser advogado e professor. Cargos e funções públicas nunca me atraíram. Eu sempre gostei de ser advogado e professor universitário. Gosto até hoje. Passei o escritório para o meu filho, mas sigo auxiliando-o em casos. Não sou mais professor de um curso fixo, mas continuo dando palestras, escrevendo e elaborando pareceres.
ConJur — Quem foram os melhores professores e alunos que o senhor teve?
Ives Gandra Martins — O meu grande professor, mestre e amigo era o professor Miguel Reale. A meu ver, é o maior filósofo da história brasileira. Quando eu fui presidente da Academia Paulista de Letras, ele nunca faltou a uma sessão. Quando ele morreu, eu o substituí na vaga na Academia Brasileira de Filosofia. Outro grande professor que tive foi Gama e Silva, que foi ministro da Justiça. Era um excelente orador. Eu gostava muito dele. O professor Cesarino Junior, de Direito do Trabalho, também era excepcional. Foi uma grande influência no começo da minha carreira, quando fui solicitador em casos trabalhistas.
Dos alunos é mais difícil lembrar. Eu dou aula desde 1959, toda hora encontro alunos. É difícil lembrar, porque você dá aula para 20, 40, 50 alunos, e eles se lembram do professor, mas o professor não se lembra de todo mundo. Um de quem eu me lembro é o Fernando Facury Scaff, que é professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo. Foi meu aluno e fez uma carreira brilhante.
Agora, convivi e trabalhei com muitos mestres, muitos astros jurídicos. Escrevi diversos livros com ministros do STF, como Oscar Corrêa e Moreira Alves. Na atual composição do Supremo, eu tenho livros escritos com sete dos dez ministros.
ConJur — Sabemos que o senhor, na época da ditadura militar, foi muito procurado por presos políticos em busca de ajuda. Como foi a sua atuação naquela época?
Ives Gandra Martins — Em primeiro lugar, eu queria deixar claro que eu fui favorável ao movimento do dia 31 de março de 1964. Não só eu, mas os quatro maiores jornais do país: O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Inclusive o dono do Estadão, Júlio de Mesquita Filho. Eu fui ao jornal no dia 31 de março para saber como estavam as tratativas. Eu era presidente do diretório paulista do PL. Todos estavam aguardando uma posição. Dos 13 partidos existentes à época, cinco eram favoráveis ao movimento.
A minha ruptura com o regime foi com o Ato Institucional nº 2. O movimento em 1964 foi para garantir a eleição, em 1965, de Juscelino Kubitschek ou de Carlos Lacerda, que eram os dois candidatos. O diretório de São Paulo do PL apoiava a candidatura de Carlos Lacerda. Quando veio o Ato Institucional nº 2, eliminando as eleições e extinguindo os partidos, inclusive o PL, eu rompi com o regime. Essa decisão me levou a nunca mais fazer política.
Eu sempre quis ser só advogado e professor universitário. Como presidente do PL em São Paulo, nunca aceitei nenhum cargo político. Quando assumi o comando do PL, a legenda tinha sido a de menor votação na cidade de São Paulo. Eu instituí um vestibular para selecionar quem iria se candidatar a cargos eletivos. Com isso, nossos candidatos sabiam falar bem na televisão, se expressar, pois tinham passado em um vestibular. Com isso, o PL obteve a terceira maior bancada de vereadores. A nossa bancada era a única que votava unida, porque todos os vereadores tinham feito um compromisso com o partido quando se lançaram candidatos de que sempre obedeceriam à minha presidência e a orientação do PL. Na prática, eu sempre gostei da análise política, da reflexão.
ConJur — O senhor chegou a defender presos políticos?
Ives Gandra Martins — Não. Houve até um pedido de abertura de IPM contra mim no regime militar, no caso da Sudam de Cigarros, que eu já mencionei. Na década de 1970, fui conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil. Lá, defendemos a redemocratização de 1979 a 1984. Como eu não sou penalista, não defendi presos políticos. Defendi mais teses, mais liberdade, mais abertura no campo tributário, mais liberdade de expressão. Eu defendia a liberdade de expressão naquela época, quando havia censura, e continuo defendendo hoje, quando eu penso que continua a haver censura.
ConJur — Quais são as principais diferenças entre a advocacia dos seus primeiros anos de atuação e a de hoje?
Ives Gandra Martins — A principal diferença é que, na advocacia antiga, a Suprema Corte só era preocupada com o Direito. Esse caso que eu mencionei, dos diretores da Sudam que foram presos, chegou à Suprema Corte em 1971. Imagine o nível de tensão política. E nós ganhamos por 5 votos a 3. Até meados dos anos 2000, a função do Supremo Tribunal Federal era interpretar o Direito. Os ministros nunca intervinham nas discussões do Legislativo. Eles não legislavam. Em 2023, a corte tem bons ministros, mas eles têm outra linha de pensamento, neoconstitucionalista, de que a Suprema Corte tem o direito de legislar.
Há vários exemplos. Prisões de parlamentares, contrariando o artigo 53 da Constituição, prisões preventivas genéricas, sem a identificação das condutas dos acusados da invasão em Brasília (em 8 de janeiro). A criação de cotas, o casamento de pessoas do mesmo sexo — não que eu tenha qualquer preconceito, pois não tenho nenhum, mas eles criaram uma hipótese nova. O mesmo em relação ao aborto. Temos as regras de fidelidade partidária, que os parlamentares não quiseram, deixando cada partido definir o que queria fazer ou não. A possibilidade de o Supremo ter iniciativa em ações penais. Há uma série de mudanças.
Tudo isso demonstra que há uma nova corrente de pensamento, que começa a dominar, que prega que os ministros do STF podem intervir nas funções de outros órgãos. Eu venho de uma geração diferente. Penso que o Judiciário pode no máximo interpretar o Direito. Caso contrário, seria mais um poder político. E o Judiciário não é um poder político, é um poder de preservação do Direito. No momento em que o Judiciário entende que pode exercer atos do Legislativo ou corrigir os rumos do Executivo, passa a ser um terceiro poder político. Porém, seus membros não são eleitos pelo povo, diferentemente do que ocorre no Executivo e no Legislativo. Isso traz insegurança política e indiscutivelmente dificulta o exercício da advocacia.
*Por Sérgio Rodas – correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2023, 8h47