15 de agosto de 2022
Para parte dos integrantes da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, talvez seja a hora de rever a jurisprudência segundo a qual não é possível julgar embargos de divergência na hipótese em que o acórdão embargado ou paradigma tenha sido proferido em ação que possua natureza de garantia constitucional.
Essa orientação foi firmada sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, que no artigo 546 previa o cabimento de embargos de divergência exclusivamente para resolver diferença de entendimentos em sede de recurso especial (no STJ) ou extraordinário (no Supremo Tribunal Federal).
Excluiu-se, assim, a resolução de divergências em ações julgadas com cognição limitada, tais como Habeas Corpus, mandado de segurança, mandado de injunção e habeas data. Por elas serem destinadas a proteger garantias constitucionais, não há instrução ou ampla produção de prova para julgamento. Exige-se apresentação da prova pré-constituída do direito alegado.
E essa linha foi reafirmada pelo STJ mesmo após a edição do CPC de 2015. O código trata dos embargos de divergência no artigo 1.043 e amplia seu cabimento. O parágrafo 1º indica que “poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária”.
A posição do STJ é, inclusive, confirmada pelo Regimento Interno, que no artigo 266, parágrafo 1º, delimita o confronto de teses jurídicas objetos de embargos de divergência àquelas decorrentes do julgamento de recursos e ações de competência originária.
Em sessão da Corte Especial no último dia 3, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do AREsp 1.725.706, aplicou essa jurisprudência para não conhecer dos embargos de divergência. O acórdão paradigma apontado pela parte foi proferido pela 6ª Turma do STJ em recurso em mandado de segurança.
E dois ministros levantaram dúvidas sobre se essa permaneceria a interpretação mais correta.
Causa…
Primeiro, o ministro Raul Araújo cogitou um pedido de vista. Ele afirmou que a interpretação pacífica e longeva do STJ se baseou em acórdãos que adotaram o entendimento do não cabimento dos embargos de divergência especificamente para aqueles casos concretos.
Ficou a dúvida, portanto, se eles seriam aplicáveis para todo e qualquer caso, como vem acontecendo. “A fundamentação que até aqui pude verificar não me pareceu suficiente”, disse Araújo.
A ministra Isabel Gallotti, por sua vez, aproveitou a deixa para manifestar que sempre teve ressalvas quanto a essa interpretação, especialmente após o CPC de 2015.
Ela argumentou que questões jurídicas estritamente de direito, e que não dependam de instrução probatória, podem ser confrontadas no Judiciário por mandado de segurança ou por ação ordinária, mediante pedido liminar. A única diferença será o rito processual adotado.
E indagou se seria justo que, apenas por essa diferença, as decisões proferidas possam ou não ser alvos de embargos de divergência, caso encontrem dissonância interna no STJ. “A composição de divergências é uma das missões mais importantes do STJ”, disse ela.
“Penso que está na hora de o Superior Tribunal de Justiça passar a admitir o confronto entre acórdãos tomados de julgamento de recursos e de ações originárias independentemente de serem de natureza constitucional ou não, porque isso não consta do CPC”, afirmou a ministra.
O questionamento encontrou guarida na opinião de juristas consultados pela ConJur. Para o constitucionalista e colunista da revista eletrônica Lenio Streck, o Código de Processo Civil não faz qualquer distinção que permita ao STJ só julgar embargos de divergência no embate de acórdãos proferidos em sede de recurso especial. “O que o CPC não distingue, não cabe ao STJ fazê-lo”.
O advogado e professor da Faculdade de Direito da USP José Rogério Cruz e Tucci defende que o rótulo da demanda judicial é irrelevante. “O que é necessário verificar é se, de fato, há divergência. Vamos supor que seja alguma coisa relacionada à interpretação das garantias constitucionais. Se houver divergência, independentemente de ser Habeas Corpus, habeas data ou mandado de segurança, cabem os embargos de divergência”.
Para a constitucionalista Vera Chemim, a possibilidade de o STJ avançar nesse debate merece uma reflexão. “Há de se alargar a jurisprudência daquele tribunal, no sentido de pensar que em matéria de direito (e não de fato) em que há divergência entre os seus próprios órgãos, por questão de ritos diferentes, o importante é dar prioridade à pacificação da divergência”, disse ela.
… e efeito
Por outro lado, segundo Vera Chemim, é preciso cautela ao decidir sobre o conhecimento e a análise de mérito de embargos de divergência nessas situações, para que o STJ não corra o risco de interferir na competência do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.
A discussão passa, também, por questão judiciária. Na sessão da Corte Especial, o ministro João Otávio de Noronha afirmou que a razão de a corte não admitir acórdão paradigma em ação de outra natureza que não de recurso especial está na função política do STJ.
O papel maior do tribunal, conforme a Constituição Federal, é ser o guardião da interpretação infraconstitucional. Para isso, criou-se um instrumento: o recurso especial. E os embargos de divergência julgados no STJ nada mais são do que um desdobramento dos recursos especiais que ele analisa.
“Portanto, os embargos de divergência estão conectados no âmbito do recurso especial. Se formos além, vamos misturar os papeis destinados pela Constituição ao STJ. Em termos de política judiciária, isso será desastroso. Quer na Corte Especial, quer nas seções, vamos julgar exclusivamente embargos de divergência”, afirmou o ministro Noronha.
O tema não evoluiu porque o colegiado entendeu que o caso concreto em julgamento não era o ideal para essa discussão. Isso porque o acórdão paradigma apontado não tinha similitude com o acórdão embargado.
Pela falta desse requisito, os embargos de divergência não foram discutidos. “Eu reservaria para uma outra ocasião examinar mais profundamente essa questão”, disse o ministro Aráujo.
EAREsp 1.725.706
*Por Danilo Vital – correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15 de agosto de 2022, 8h46