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5 de setembro de 2022

Em uma tarde ensolarada e calorenta do inverno brasiliense, os sete juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos se reuniram no auditório do Superior Tribunal de Justiça para falar sobre Direito Internacional. Eles estavam no Brasil para o 150º período de sessões ordinárias da corte, de 22 a 26 do mês passado, e aproveitaram a viagem para cumprir uma das funções relacionadas ao cargo: difundir informações.

Corte Interamericana de Direitos Humanos fez sessões ordinárias no Brasil pela 3ª vez
Carlos Moura

Diante de um numeroso público formado por juristas, diplomatas e estudantes, o vice-presidente do órgão, o colombiano Humberto Antonio Sierra Porto, definiu o Direito Internacional como um assunto dos juízes nacionais. “Hoje, é de interesse dos órgãos judiciais trabalhar temas de Direito Internacional e direitos humanos, porque têm uma relevância prática em cada um dos países. Hoje, se diz que a Corte Interamericana impacta o trabalho dos sistemas de Justiça de cada país.”

Não por coincidência, a afirmação serve muito bem ao Brasil, apesar de seu ingresso tardio no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. O país promulgou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, por meio do Decreto 678, e reconheceu a competência da Corte IDH por meio do Decreto Legislativo 89/1998. A partir dali, não apenas se comprometeu a seguir os termos da convenção como passou a correr o risco de responsabilização internacional.

Ao contrário de outros países signatários do tratado, o Brasil nunca editou lei para regulamentar a implementação das decisões do tribunal internacional. Ainda assim, nesses quase 25 anos a Corte IDH teve — e, talvez mais do que nunca, ainda tem — impacto efetivo na realidade brasileira. Ela foi a responsável por impulsionar leis e alterar a intepretação dos tribunais nacionais, e afetou até o modelo de federalismo inaugurado pela Constituição de 1988.

Conduta do Brasil quanto aos crimes de maio de 2006 são investigadas pela CIDH
Reprodução

Medo da acusação
Hoje, o Brasil responde a dez processos na Corte IDH. São casos que foram denunciados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão que analisa, investiga e decide se os encaminha para julgamento. Desde a epidemia da Covid-19, a CIDH foi acionada algumas outras vezes por causa das violações decorrentes da política governamental de combate à doença, por exemplo. Ações policiais e sistema prisional são outros temas férteis para denúncias.

O risco de responsabilização internacional do país tanto é um incômodo que a reforma do Judiciário promovida pela Emenda Constitucional 45/2004 incluiu na Constituição o incidente de deslocamento de competência. É uma forma de o Superior Tribunal de Justiça analisar se a investigação de algum caso de violação de direitos humanos deve ser deslocada da esfera estadual para a a federal, de modo a garantir o cumprimento dos tratados internacionais.

O exemplo mais recente é a investigação da chacina do Parque Bristol, ocorrida na cidade de São Paulo em 2006 e jamais solucionada. Trata-se de um dos casos do “maio sangrento”, quando mais de 500 pessoas foram mortas no estado de São Paulo em crimes atribuídos a grupos de extermínio, com participação de policiais e outros agentes públicos. Em 2021, a CIDH recebeu a denúncia contra o governo brasileiro. E, neste ano, o STJ decidiu que a Polícia Federal deve assumir a apuração.

Por ocasião do julgamento, o ministro Ribeiro Dantas, da 3ª Seção do STJ, manifestou um incômodo e uma preocupação com o deslocamento da competência, por colocar em xeque o federalismo brasileiro. “Sempre que se concede a federalização de uma investigação ou da apuração de um crime, está se passando por cima da estrutura federativa que foi estabelecida como regra pela Constituição Federal”, lamentou ele. O ministro Antonio Saldanha Palheiro destacou que isso não deve se tornar uma prática corriqueira: “Nosso sistema está tão machucado que esse tipo de situação pode trazer uma decrepitude para a própria federação, como um todo”.

Relator do IDC, o ministro João Otávio de Noronha afirmou que a federação brasileira é sui generis (única), feita “de cima para baixo” e em constante remodelação. “E, nesse processo, nosso pacto federativo delega aos estados a competência, mas também cria figuras centralizadoras de controle. O incidente de deslocamento da competência tem a preocupação com a imagem internacional da Justiça brasileira”, explicou, em referência ao impacto da Corte IDH.

Caso Ximenes Lopes levou à reforma manicomial e à 1ª condenação do Brasil
Reprodução/Jornal da USP

Saúde mental, violência de gênero e escravidão
Até o momento, o Brasil acumula dez condenações na Corte IDH. Dez casos em que se reconheceu que o país violou direitos humanos. No primeiro deles, o Brasil foi responsabilizado pela morte de Damião Ximenes Lopes, em 1999, em condições desumanas e degradantes na Casa de Repouso Guararapes, hospital em que ele se submetia a tratamento psiquiátrico.

A denúncia à CIDH levou à movimentação do Legislativo, que no ano seguinte aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2000). Em 2006, a Corte IDH condenou o Brasil a indenizar a família da vítima e a continuar a desenvolver programa de capacitação para enfrentamento da saúde mental. O cumprimento dessa condenação ainda é monitorado e cobrado pela corte.

Outra grande alteração legislativa impulsionada pelo acionamento da CIDH foi a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Maria da Penha Maia Fernandes foi agredida pelo marido em 1983 e, em decorrência da violência doméstica, ficou paraplégica. Ela aguardou por mais de 15 anos a Justiça estadual do Ceará resolver a ação penal. A denúncia e a condenação na Corte IDH ajudaram a desenvolver um conjunto de ações estatais de combate à violência de gênero que continua a se expandir, como comprova a Lei do Feminicídio (Lei 13.240/2015).

Um caso de igual impacto foi o do trabalhador rural José Pereira, gravemente ferido ao tentar escapar da Fazenda Espírito Santo, onde era obrigado a viver e trabalhar em condições análogas à escravidão. Nele, não houve condenação. Foi a primeira vez que o Brasil assumiu a responsabilidade pelas violações de direitos humanos, o que culminou em acordo amistoso e na aprovação de uma lei específica (Lei Federal 10.706/2003) para indenizar a vítima.

Desde então, o país expandiu as ações de combate ao trabalho análogo à escravidão. Foram criadas a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e a chamada “lista suja”, onde o próprio governo expõe empregadores que submeteram seus empregados a condições desumanas. Em 2005, foi lançado o Pacto Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.

Posição da Corte IDH sobre as leis de
anistia não foi considerada pelo Brasil

Anistia e ditadura militar
As violações de direitos humanos cometidas pelos governos ditatoriais instaurados na segunda metade do século XX na América do Sul são constantes na pauta da Corte IDH. Nesse tema, o Brasil é um ponto negativamente colocado fora da curva. O país ignorou a tendência do tribunal internacional de condenar leis de anistia latino-americanas que ofereceram impunidade a agentes estatais.

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou uma ação de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela OAB que questionou a constitucionalidade da Lei da Anistia (Lei 6.683/1979), que eximiu de culpa quem quer que tenha cometido crimes comuns no período da ditadura militar, entre 1964 e 1985. A corte afastou a possibilidade de uma revisão da norma, aprovada após ampla negociação. Houve grande repúdio internacional.

O Brasil, além disso, foi condenado por violações cometidas no caso da Guerrilha do Araguaia. Entre 1972 e 1975, operações do Exército assassinaram opositores do governo que se instalaram no norte do país. A CIDH concluiu que, exatamente por causa da Lei da Anistia, o país nunca se preocupou em investigar o caso. A Corte IDH, então, condenou o governo pelo desaparecimento de 62 pessoas na região do Araguaia.

Posteriormente, houve avanços. Foi criada a Comissão Nacional da Verdade, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, com o objetivo de esclarecer episódios de violação de direitos humanos durante a ditadura. E a edição da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) também se mostrou um instrumento valioso nesse sentido.

Segundo Humberto Porto, corte afeta o trabalho dos sistemas de Justiça de cada país
Emerson Leal/STJ

Melhor cumprir
Segundo o advogado e professor de Direito Internacional Gabriel Damasceno, as decisões da Corte IDH possuem caráter de obrigatoriedade e podem ser classificadas como uma normativa de hard law (com vinculação real). “O seu descumprimento gera mais do que um ‘mal-estar’ para o Estado brasileiro”, explica ele. “Gera uma situação de ilegalidade. O Brasil passa a ser visto pela sociedade internacional como um violador de direitos humanos e descumpridor de decisões internacionais.”

Para a professora de Direito Internacional Tatiana Cardoso Squeff, as decisões da Corte IDH são importantíssimas para sabermos onde temos, de fato, de melhorar. “Por vezes uma decisão pode ensejar a criação de políticas públicas importantes para remediar a violação de direitos humanos”, afirma ela. O impacto alcança, inclusive, pretensões relacionadas à política externa brasileira.

Basta lembrar que, em governos recentes, o país teve o objetivo de conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e se propôs a intermediar conflitos internacionais de alto relevo. “Seguir as decisões internacionais significa ter um poder de barganha maior. Em que pese uma violação de direito internacional tenha ocorrido, seguir a decisão significa acreditar no sistema internacional, o que pode fazer com que o Brasil possa alcançar o seus objetivos no plano externo”, aponta a advogada.

Membro da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão Arns de Direitos Humanos, o advogado Belisário dos Santos Júnior destaca que a agenda internacional está cada vez mais voltada ao Brasil, motivada, infelizmente, pelas ameaças à democracia, ao sistema eleitoral e ao próprio resultado das eleições.

“Então, são cada vez mais frequente reuniões de entidades, organismos da sociedade civil com organismos internacionais e também com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nós voltamos a entender, assim como aconteceu na ditadura, que o olhar internacional, o agir das entidades do sistema interamericano, mesmo universal, são importantes para proteção dos direitos da pessoa humana aqui no Brasil.”.

No período em que esteve no Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos fez audiências para quatro julgamentos, de quatro países. Por uma questão de praxe, nenhum deles envolveu o Brasil, o país-sede das sessões itinerantes. Contudo, as decisões desse julgamentos devem afetar a jurisprudência do país, em razão de uma resolução do CNJ.
Leia mais

*Por Danilo Vital – correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

*Por Karen Couto – correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 5 de setembro de 2022, 8h24