18 de janeiro de 2022
Embora o Código de Processo Civil autorize os tribunais a, por meio de ato administrativo, designar varas e câmaras especializadas, esse poder não pode ser usado para alterar ou restringir normas de competência fixadas em lei e pela Constituição.
Com esse entendimento, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou teses com o intuito de proibir que tribunais elejam varas especializadas como as únicas competentes para tramitar processos cuja competência prevista em lei é sensivelmente maior.
O julgamento foi feito em sede de incidente de assunção de competência (IAC). Ao todo, foram fixadas quatro teses, na sessão de 21 de outubro de 2021.
O acórdão foi publicado em 9 de dezembro e encaminhado aos presidentes dos Tribunais Regionais Federais, aos presidentes dos Tribunais de Justiça, à Turma Nacional Uniformizadora, ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho da Justiça Federal.
O tema não é novo no STJ e trata especificamente da Resolução 9/2019 do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. A norma atribui arbitrariamente à Vara Especializada de Várzea Grande (MT) a competência exclusiva para tramitar todas as causas sobre saúde pública, ações civis públicas, ações individuais, cartas precatórias, ações alusivas à Infância e Juventude e de competência dos Juizados Especializados da Fazenda Pública afetos à saúde.
Isso significa que, estando o estado presente no polo passivo da causa, isoladamente ou em litisconsórcio com municípios, todos os 3,5 milhões de habitantes do Mato Grosso — distribuídos em uma área territorial de 903 mil km² — que vierem a mover processos deverão se deslocar a Várzea Grande, cidade vizinha da capital Cuiabá.
Acesso à Justiça
Para a 1ª Seção do STJ, a resolução fere diversas leis que tratam da competência para julgamento sob o viés de ampliar o acesso à Justiça pela dispersão territorial.
É o caso, por exemplo, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que coloca como competente a Vara da Infância e Juventude do local onde ocorreu a ação ou a omissão. O mesmo vale para normas do Estatuto do Idoso e do próprio Código de Processo Civil.
“Isso tudo porque, a despeito das eventuais vantagens da concentração e especialização das varas, nessas matérias, o legislador foi expresso em optar por uma política pública processual de facilitação do acesso à Justiça, visando a promover a mais ampla tutela aos interesses de pessoas hipossuficientes ou vulneráveis”, explicou o ministro Og Fernandes, relator do IAC.
A lógica, conforme explicou no voto, é simples. O Estado está presente em todo o seu território, mas o cidadão não pode ser onerado pela imposição de foro único escolhido arbitrariamente pela administração judicial para ser o competente para tais feitos, especialmente se for distante de seu domicílio.
No caso do Mato Grosso, um cidadão de Vila Rica que precisasse ajuizar ação civil pública teria de percorrer 1.268 km de estrada até o município de Várzea Grande.
“Enfatize-se que o ato normativo secundário não pode contrariar lei ou a Constituição. No caso específico, a resolução administrativa do Tribunal matogrossense, concreta e efetivamente, viola as garantias processuais dessas classes de pessoas”, disse o ministro Og Fernandes.
Leia a íntegra das teses:
Tese A
Prevalecem sobre quaisquer outras normas locais, primárias ou secundárias, legislativas ou administrativas, as seguintes competências de foro:
i) em regra, do local do dano, para ação civil pública (art. 2º da Lei n. 7.347/1985);
ii) ressalvada a competência da Justiça Federal, em ações coletivas, do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano de impacto restrito, ou da capital do estado, se os danos forem regionais ou nacionais, submetendo-se ainda os casos à regra geral do CPC, em havendo competência concorrente (art. 93, I e II, do CDC).
Tese B
São absolutas as competências:
i) da Vara da Infância e da Juventude do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou a omissão, para as causas individuais ou coletivas arroladas no ECA, inclusive sobre educação e saúde, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores (arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990; e Tese n. 1.058/STJ);
ii) do local de domicílio do idoso nas causas individuais ou coletivas versando sobre serviços de saúde, assistência social ou atendimento especializado ao idoso portador de deficiência, limitação incapacitante ou doença infectocontagiosa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores (arts. 79 e 80 da Lei n. 10.741/2003 e 53, III, e, do CPC/2015);
iii) do Juizado Especial da Fazenda Pública, nos foros em que tenha sido instalado, para as causas da sua alçada e matéria (art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009);
iv) nas hipóteses do item (iii), faculta-se ao autor optar livremente pelo manejo de seu pleito contra o estado no foro de seu domicílio, no do fato ou ato ensejador da demanda, no de situação da coisa litigiosa ou, ainda, na capital do estado, observada a competência absoluta do Juizado, se existente no local de opção (art. 52, parágrafo único, do CPC/2015, c/c o art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009).
Tese C
A instalação de vara especializada não altera a competência prevista em lei ou na Constituição Federal, nos termos da Súmula n. 206/STJ (“A existência de vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial resultante das leis de processo.”). A previsão se estende às competências definidas no presente IAC n. 10/STJ.
Tese D
A Resolução n. 9/2019/TJMT é ilegal e inaplicável quanto à criação de competência exclusiva em comarca arbitrariamente eleita em desconformidade com as regras processuais, especificamente quando determina a redistribuição desses feitos, se ajuizados em comarcas diversas da 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT. Em consequência:
i) fica vedada a redistribuição à 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT dos feitos propostos ou em tramitação em comarcas diversas ou em juizados especiais da referida comarca ou de outra comarca, cujo fundamento, expresso ou implícito, seja a Resolução n. 9/2019/TJMT ou normativo similar;
ii) os feitos já redistribuídos à 1ª Vara Especializada de Várzea Grande/MT com fundamento nessa norma deverão ser devolvidos aos juízos de origem, salvo se as partes, previamente intimadas, concordarem expressamente em manter o processamento do feito no referido foro;
iii) no que tange aos processos já ajuizados – ou que venham a ser ajuizados – pelas partes originalmente na 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT, poderão prosseguir normalmente no referido juízo;
iv) não se aplicam as previsões dos itens (ii) e (iii) aos feitos de competência absoluta, ou seja: de competência dos Juizados Especiais da Fazenda, das Varas da Infância e da Juventude ou do domicílio do idoso, nos termos da Tese B deste IAC n. 10/STJ.
RMS 64.531
RMS 64.525
RMS 64.625
RMS 65.286
Fonte: STJ