26 de abril de 2022

A inclusão da temática do meio ambiente nas discussões e negociações comerciais internacionais não é exatamente nova. A questão resta exposta já no preâmbulo da Declaração de Marrakesh de 1994, por ocasião da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), tendo ganhado progressiva força e expressão por meio da criação do Comitê de Comércio e Meio Ambiente, da inclusão do assunto na agenda de negociações da Rodada Doha de 2001 [1] e, mais recentemente, com o lançamento das chamadas Discussões Estruturadas sobre Sustentabilidade e Comércio (Tessd, sigla em inglês) [2] — objetivando aprovar, durante a Conferência de 2022 [3], declaração ministerial para reforçar o papel da OMC no tratamento dos diferentes tópicos que compõe o universo do “comércio e sustentabilidade”.

Além da OMC, outras organizações internacionais igualmente vêm incentivando a promoção de esforços negociais e regulatórios de seus membros para garantir o desenvolvimento harmônico entre políticas comerciais e ambientais, a exemplo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [4] — cuja importância e impacto sobre as políticas aduaneiras nacionais foi objeto de recente artigo publicado nesta coluna.

No que se refere ao Brasil, a temática do comércio e meio ambiente, apesar de ganhar atenção em tempos recentes e de forma ainda incipiente, já fomentou alguns episódios relevantes, a exemplo da disputa comercial movida pela União Europeia contra a política brasileira de restrição de importação de pneus recauchutados (DS332), popularmente conhecida como caso “Brazil — Retreaded Tyres”, iniciado em 2005 e cuja implementação se deu em 2009.

Tal disputa, além de ser uma das mais conhecidas em que o Brasil figurou como parte, trouxe grandes repercussões em termos nacionais e internacionais, seja pelas conclusões do órgão de apelação da OMC, que reconheceu o direito dos países em adotarem medidas restritivas de comércio para salvaguardar o meio ambiente e evitar a importação de resíduos sólidos, seja pelas intensas discussões judiciais paralelas que ocorreram no decorrer do caso, o que levou, inclusive, ao envolvimento do STF no tema por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101/DF.

No que concerne a discussão ora proposta, verifica-se que a principal consequência do caso foi a consolidação de uma política brasileira bastante restritiva sobre a importação de bens que não sejam novos, independente da finalidade do bem ou de seu estado, seja ele usado, recondicionado ou remanufaturado [5].

Se, por um lado, a restrição e, na maior parte dos casos, proibição de importação de bens que não sejam novos apresentava-se como uma política aparentemente legítima de proteção do meio ambiente, da saúde pública e dos consumidores, por outro, tal rigidez levou o país a se fechar para o crescente mercado internacional dos bens remanufaturados, afastando-se das práticas comerciais de países desenvolvidos e recomendadas internacionalmente.

O investimento mundial em bens remanufaturados tem se tornado um negócio promissor, na medida que permite a reutilização de bens após o fim de sua vida útil, o que reduz a demanda da indústria por matérias-primas e recursos naturais, ao passo que permite a adoção de saídas inteligentes e ambientalmente corretas para o que até então era considerado “lixo”. Com isto, a indústria da remanufatura não só gera eficiência econômica e inovação ecológica para setores produtivos tradicionais, como permite novas formas de geração de renda e empregos.

Para se ter noção sobre a relevância e potencial do mercado de remanufaturados, os Estados Unidos, líder mundial no setor e que exporta cerca de 27% do total produzido, passou a incluir previsões sobre o tema em seus acordos preferenciais, a exemplo do que ocorreu nas negociações do chamado USMCA, assinado juntamente com México e Canadá e que substituiu o antigo Nafta. Da mesma forma, a União Europeia vem empreendendo esforços para expansão do setor, estimando que seu mercado de remanufaturados chegue a representar 90 bilhões de euros até 2030.

Um dos setores industriais que responde pela maior parte do fluxo comercial internacional de remanufaturados é o de autopeças, visto que até 60% das partes automotivas são passíveis de reutilização após o fim da vida útil. O curioso é que a tendência não é adotada apenas pelos produtores voltados a nichos mais populares. Marcas tradicionais e de prestígio como BMW e Mercedes-Benz vem apostando na remanufatura não apenas para redução dos custos de produção — que chegam a 50% — mas como forma de agregar sustentabilidade à sua imagem.

Diante desse cenário, em junho de 2021, a Secex lançou consulta pública sobre a importação de bens remanufaturados e a serem remanufaturados no Brasil, com vistas a rever as políticas nacionais sobre o tema. Com base nas 121 respostas obtidas, cuja maior parte mostrou-se favorável a abertura do mercado brasileiro a tais produtos, foi realizado estudo de impacto regulatório e divulgada minuta de nova portaria para a regulamentação do regime de licenciamento de importações, visando a substituição da Portaria Secex nº 23/2011. Dentre outros pontos, a nova minuta traz uma seção inédita sobre a distinção entre bens usados e remanufaturados e regula a importação destes últimos.

Na norma atualmente vigente, todos os bens que não são considerados novos recebem, por falta de distinção e de políticas específicas, o mesmo tratamento dispensado aos bens usados. Assim, a regra geral aplicável é de que a importação de bens que não sejam novos é proibida nos casos de bens de consumo e restrita nos casos de bens de capital e alguns outros bens taxativamente especificados, desde que não haja similar nacional.

Com a nova minuta, o governo propõe a manutenção da regra de bens usados, mas cria seção específica para regular e permitir a importação de bens remanufaturados, cuja definição – até então inexistente em instrumentos de política pública — segue aquela disposta pela ABNT na NBR 16.290:2014. Segundo a referida norma, o bem remanufaturado é aquele resultante de processo industrial realizado pelo fabricante original do produto ou empresa autorizada pelo mesmo, que deve garantir ao bem às mesmas condições de operação, funcionamento e desempenho do bem novo original, inclusive em termos de atendimento a regulamentos e normas técnicas aplicáveis e de garantia do produto.

Deve-se destacar que, por muito tempo, a postura reticente de muitos setores e consumidores aos bens remanufaturados estava relacionada a dúvidas sobre qualidade e procedência. Todavia, isto decorre, em grande medida, da confusão com o que seriam bens reparados ou recondicionados. Em tais processos, sejam eles industriais ou de mera manutenção, não há garantias relacionadas à marca, funcionamento do produto ou atendimento a regulamentos e normas técnicas, além de poderem ser realizados por qualquer empresa. Por tal razão, a proposta de mudança normativa não abrange esses bens, que continuam sujeitos a todas as restrições e proibições já vigentes.

Outra inovação é que, diferente dos bens usados, cuja autorização, via de regra, ocorre somente nos casos de bens de capital, a nova proposta autoriza também a importação de remanufaturados que sejam bens de consumo, suas partes e peças. No caso das partes e peças, bens de capital e outras máquinas e equipamentos sequer haverá necessidade de comprovar ausência de similar nacional, fazendo com que o processo seja pouco burocrático e evitando que os custos e o tempo de importação possam restringir o acesso ao mercado.

Por fim, outro aspecto curioso da minuta diz respeito a questão dos pneus recauchutados, cuja saída encontrada pelo governo para proteger seus direitos declarados na disputa da OMC que mencionamos no início do artigo foi trata-los como exceção, prevendo expressamente que não será autorizada a importação de pneumáticos classificados na posição 4012 da NCM quando usados, mesmo que reprocessados, independentemente da destinação”.

Do exposto, pode-se concluir que a entrada em vigor das novas regras de importação de bens remanufaturados — ainda sem data prevista — representa um importante passo do Brasil em termos de modernização de suas regras e políticas comerciais e de adequação às melhores práticas internacionais, as quais devem contribuir não só para a eficiência econômica do país, mas abrir espaço para um maior engajamento com parceiros relevantes, seja de maneira bilateral e plurilateral, seja em foros multilaterais como a OMC e a OCDE.


[1] Na Reunião Ministerial de Doha, em 2001, os membros da OMC concordaram com três tópicos de negociação relativos à temática de comércio e meio ambiente: a relação entre a OMC e os Acordos Ambientais Multilaterais, a eliminação de tarifas para bens e serviços ambientais e melhorar as disciplinas sobre subsídios à pesca.

[2] As Discussões Estruturadas sobre Sustentabilidade e Comércio ou “Trade and Environmental Sustainability Structured Discussions” (Tessd) se referem à iniciativa patrocinada por cerca de 50 países que busca servir de plataforma para discussões sobre temas ambientais na OMC. A agenda do mecanismo tem conferido particular ênfase aos seguintes temas: bens e serviços ambientais; subsídios a combustíveis fósseis; mecanismos de ajuste de carbono; mudança climática; cadeias de suprimento sustentáveis e o apoio a países de menor desenvolvimento relativo. O Brasil, apesar de participar das discussões, até o momento ainda não é um dos patrocinadores.

[3] A 12ª Conferência Ministerial da OMC, chamada de CM12, prevista inicialmente para ocorrer em 2021, foi adiada duas vezes em razão da pandemia e será realizada na semana de 13 de junho de 2022, em Genebra.

[4] A OCDE trata do tema do comércio e meio ambiente dentro do que chama de “Economia Circular”, conceito voltado para descrever um sistema econômico onde os bens, quando atingem o fim da sua vida útil, ao invés de se tornarem resíduos sólidos, ou, em termos leigos, lixo, são reciclados ou utilizados como insumos para criação de novos bens. Ver THORSTENSEN, Vera; FARIA, Antônio. A OCDE e a Economia Circular. CCGI – Nº 35 Working Paper Series. São Paulo: FGV, 2021. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30954/TD%20549%20-%20CCGI%2035.pdf?sequence=1. Acesso em 22/4/2022.

[5] A este respeito, vale a leitura do seguinte artigo, que resume a posição brasileira das últimas décadas: AMARAL, Renata Vargas. Bens Usados x Remanufaturados: as prováveis mudanças nos cenários comerciais internacional e brasileiro. Disponível em https://womeninsidetrade.com/bens-usados-x-remanufaturados-as-provaveis-mudancas-nos-cenarios-comerciais-internacional-e-brasileiro/. Acesso em 22/4/2022.

Por Fernanda Kotzias 

Fonte: Revista Consultor Jurídico